Jerusalém - Parte 2: Convite

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Sob os escombros de uma cidade sem voz, um morcego escapou, por entre tubos enferrujados, de um incêndio que se alastrava desde muitos quilômetros ao sul, porque não havia quem o contivesse. Em torno de torres de concreto, vidros rachados se agarravam a pedaços de pano tremulantes, manchados de vermelho escuro. Nos edifícios, máquinas flutuantes não muito diferentes dele próprio, embora de cores vibrantes e feições variadas, vagavam a esmo. Em tempos passados, elas reproduziram filmes e agendaram encontros para seus mestres. Incapaz de compreendê-las, o morcego rodopiou e se afastou. Sobrevoou então paisagens secas, em grande parte recobertas de areia, e atravessou uma galeria de arcos de pedras, vários deles pichados com o mesmo símbolo: um triângulo em cujo interior três círculos se conectavam, como num circuito eletrônico.

Quilômetros depois, uma fortaleza se estendia, em todas as direções, para muito além de onde seu sonar alcançava. Torres retangulares, tais como minaretes, precediam edifícios extensos, de distintas arquiteturas. Contrafortes e túneis fechados conectavam as torres e os edifícios entre si, todas as construções reluzindo a mesma cor prata escuro. Ascendeu com o intuito de ultrapassar a cidade emparedada por cima, até que detectou espectros de - podiam ser? - outros de sua espécie. Apressou o voo e encontrou, num vão sobre uma das torres, várias câmaras enfileiradas, umas com filhotes barulhentos de pássaros, outras mais profundas, onde morcegos dormiam. Atacou um kiwi pendurado num pedaço de ferro, mais saboroso que os dejetos gelatinosos de um trem desativado que haviam alimentado sua colônia até aquele dia. Satisfeito, aglomerou-se entre os seus. Enquanto dormia, uma agulha desceu do teto da câmara onde se instalara e picou suas costas.

***

O Globo de Pesquisas contava com um laboratório de químicos afastado, desativado após a transferência dos equipamentos para setores operacionais da fortaleza. Cide o adentrou sem cerimônia e checou rapidamente se todos já haviam chegado: apenas Leon, Nadine e Tanya. Eram — sempre foram — suficientes.

— Serei breve e direto. Havia um elemento ainda remanescente nos arquivos —  disse Cide, e então arregalou os olhos e espremeu a boca, como se instasse silenciosamente uma solução. — Pela maneira como me foi comunicado, talvez mais de um.

O grupo debateu sobre o contexto de descoberta do elemento, e quem o havia encontrado, evitando tratar dos possíveis próximos passos.

— Vamos nos reunir à noite, após o fechamento dos dormitórios. Como nos velhos tempos... - disse Cide, olhando para o chão, e então saiu.

***

Ayat imprimiu vinte vias adicionais do relatório para distribuir ainda naquela tarde. Para prevenir o risco de contaminação, a fortaleza cumpria a diretriz de köttrymd integral: nenhum equipamento que processava informações podia se interligar a outro, e se entregavam documentos sempre em mãos.

— Gostei, Ayat — disse a primeira coordenadora que procurou, sua rival nas aulas de taekwondo. - Vai ser bacana ter algo mais para prestar atenção enquanto a gente revisa reportagens. Você ainda tem esperança que um dia a gente vai reverter a Catástrofe, né? Às vezes eu não sei ...

— Não, por favor, não me diz que você vai virar aceitante. A vida aqui é estagnada, é uma prisão. Se você soubesse o que estávamos perto de alcançar...

— Eu sei, mas para que alcançar mais? Olha, eu não virei nada; aliás, eu odeio esses rótulos de reversores e aceitantes. Somos todos prisioneiros, isso sim. Vou repassar seu memorando para o meu time, com fé, juro. Eu ainda acredito. Só não sei por quanto tempo.

Os colegas de Ayat, no Globo de Pesquisa, invariavelmente, também a acompanhavam numa ou noutra atividade de cultura e lazer. Além de debater sobre os movimentos que priorizavam, em oposição, a eliminação do Basilisco ou a sustentabilidade da vida na fortaleza, Ayat transitou pelas salas com beijinhos, abraços e promessas de novos encontros.

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