Parte 1

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RIO DE JANEIRO, 25 de abril de 2027.

          Hoje o dia está quente. Meu irmão, Danilo, e eu tivemos que ir à costa para verificar o desembarque dos suprimentos que vieram do Novo Reino, antiga Grã-Bretanha. Aqueles ratos de navio enviaram alimentos a menos desta vez. Parece que dez por cento a menos do que da última vez. Teremos que eliminar quinze por cento dos sais minerais e frutas artificiais do pacote deles. Para aprenderem que não estamos brincando de supermercado.
          Os tempos estão muito difíceis. Desde que A Peste se espalhou na América do Norte e se propagou para o resto da América, e para o mundo, tudo virou de ponta-cabeça. O ataque dos animais foi monstruoso.
          Lembro-me da primeira vez que vi um cachorro falar. Eu tinha sete anos e ele havia se ferido, acho que tinha sido atropelado por algum automóvel, e eu fui acodi-lo. Foi tão aterrorizante que comecei a gritar até meu pai aparecer e atirar na cabeça do pobre coitado.
          A realidade é a seguinte: estamos todos num grande poço sem fundo, onde a única preocupação é se permanecemos vivos ou mortos. Ninguém avisou que a Terceira Guerra Mundial implodiria, nem que seria totalmente diferente das guerras tradicionais. E que ela não seria de humanos contra humanos.
          Bom, agora eu sei que posso esperar tudo, que toda minha imaginação não é páreo para essa realidade. Cachorros falantes? Ursos atiradores? Cobras pervertidas? Lobos que andam sobre duas patas apenas? Esse mundo não deveria existir. Deveria ser apenas um sonho. Ou um pesadelo. Mas existe. E o pior é que os humanos estão entrando em extinção. Só há mais algumas colônias pelo mundo. Uma base na Rússia, refugiados em Madagáscar, Washington - Estados Unidos, Noruega, República Tcheca, Novo Reino - formado após todos os animais marinhos do oceano Atlântico moverem a ilha da Grã-Bretanha em direção a Bélgica. E Rio de Janeiro. Na verdade só a Cidade Maravilhosa, que foi tão maravilhosa que nos possibilitou fazer uma enorme forteleza aquática e terreste. Até mesmo aérea. Claro que milhares, milhões, bilhões de pessoas morreram. Umas nos ataques, outras pelas doenças que surgiram após a mutação dos animais. E terceiras, pelas horas incansáveis de trabalho para fazer a cidade ficar protegida, e horas de pesquisas para encontrar a fonte de tudo isso, o estopim de toda a tragédia.
          Até agora, só tivemos êxito no primeiro objetivo. Danilo e eu trabalhamos no Setor das Armas. Há três setores; Armas, Pesquisas e Médico. Dentro desses três, há mais milhares de subsetores. Nosso trabalho é colocar ordem. Vigiar tudo e todos. Manter tudo estável, sem complicações. Manter o equilíbrio. Uma vez ou outra, as pessoas se desesperam, surtam. Nosso trabalho é tentar impedir isso, ou conter, caso ocorra. Mas, vez ou outra, somos enviados para supervisionar mercadorias e suprimentos, como hoje.
          Nossa população atual é pequena comparada a anos atrás. Somos apenas quinze mil e setecentos, arredondadamente. Estamos morrendo de forma muita rápida. Por dia, morre de duas à seis pessoas e isso é preocupante. Os suprimentos estão demorando para chegar cada vez mais. E isso não está sob o nosso controle. Os animais estão implacáveis em relação aos navios que cortam o oceano. A poluição que as máquinas gigantescas deixam os fazem ficar mais irados ainda.
          Particularmente, acho que eles estão comendo nossa comida, para não termos o suficiente para alimentar todo mundo e para acharmos que o Novo Reino não está cumprindo com o acordo. É algo lógico. Encontramos um grupo de seis ratos escondidos no navio. Os trancamos e levamos para o Setor das Pesquisas. Eles eram estranhamente fofinhos. Danilo disse que eu parecia uma mulherzinha ao dizer isso, o que tecnicamente eu sou. Mas na maioria das vezes, sou durona para compor meu perfil de zeladora no Setor das Armas.
          Ando um pouco preocupada com Robin. Ele ainda não voltou da última expedição à Niterói para exterminar alguns animais rebeldes que estavam quebrando o acordo da fronteira.
          Niterói é totalmente tomada pelos animais mais nojentos e selvagens que possamos imaginar. O acordo foi que ao término de cada extremidade da ponte, a terra pertencia a quem estivesse dominando a área, e que seria contra as regras invadir ou ir até o outro lado sem aviso prévio ou permissão. Mas parece que alguns ursos foram vistos saqueando uma mercearia na Zona Oeste da cidade. Então foram mandados alguns zeladores para verificar, e foi comprovado. Deu-se ordens para irem ao outro lado da ponte falar com Nicarã, o líder deles. Um urso gigantesco que não possui o olho esquerdo, pois Danilo o arrancou.
          Meu irmão é um herói. Graças à sua valentia, conseguimos conquistar nosso Rio de Janeiro e fazer o acordo com os animais. A única exigência foi Danilo nunca mais aparecer diante de Nicarã e, em caso de doença, enviarmos um veterinário para trata-los. Acontece que a equipe do Robin já deveria ter retornado faz quatro dias. E nada. A Ordem não enviou nenhuma notícia, nem mesmo para o primo do Robin, Val. Estou preocupada. Robin e eu nos conhecemos desde que nascemos. Nascemos no mesmo dia, no mesmo quarto de nascimento. Nos tornamos amigos e a pouco tempo ele me pediu em casamento. E agora ele está desaparecido. Claro que sou psicologicamente capaz de aceitar essa situação e supera-la. Mas não posso me precipitar antes de uma confirmação oficial. Mas sei que Robin está bem. Ele é um dos melhores zeladores que temos. Sei que ele voltará.

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