SONHO

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Noite. Ninguém além dos cães e das prostitutas e dos que sofrem por amor estão acordados, presenciando o ar gelado que entra pela porta entreaberta e a calmaria das ruas. Valerie sabe muito bem como as noites são frias, e sabe como podem ser cruéis. Para os mendigos, noites assim são o seu inferno. Para as pessoas de bem, noites assim são comuns e aconchegantes. Para os poetas, noites assim inspiram. Para Mercedes, essa seria sua última noite, a noite onde ninguém, além de Valerie, presenciaria seu decadente fim.



-Onde vim parar essa noite? – Indagou a menina, que se surpreende por ter 16 anos novamente. Valerie não conhecia Mercedes nesta fase de sua vida. Contudo, ambas contaram muito de sua vida, uma para a outra. Mercedes sempre foi muito ligada aos artistas, em especial músicos. Valerie sabia disso, e não se surpreende com a ambientação do sonho. Era uma sala de estar, aparentemente de uma mansão. Parecia com a casa de Mercedes, mas um tanto diferente. Era possível ouvir vozes rítmicas e guitarras sendo tocadas insipidamente. Um lugar com que Mercedes sempre desejou que existisse, no seu mais íntimo opúsculo. Um lugar como o paraíso musical, que apenas seria possível ver e sentir dentro de um sonho.


A ambientação da mansão é impecável. Toca-Discos, dvd's, uma enorme estante de discos. Álbuns completos. E até existiam algumas coisas que Valerie nunca tinha visto em vida. Ela fica pensando no que poderiam ser aqueles dois discos na área "Nirvana", logo após de In Utero. Valerie percebe que, conforme os sons foram aumentando, a casa ia mudando de cor. Pouco a pouco, o lugar brilhava em rosa cintilante e laranja caramelado. Ela se sentia num show psicodélico onde a plateia eram cartelas de LSD. Curiosamente, Valerie tem certeza que viu perfeitamente o que imaginara. Ela, então, decide que é hora de explorar a mente da amiga. Ela se depara com uma porta, na parede esquerda da sala da mansão. Valerie não se recordava de existir uma porta assim, naquele lugar. Ao invés disso, existia apenas um quadro enorme dos Beatles.



Valerie abre a porta, e sem mais nem menos depara-se com o cadáver de Paul McCartney. Ela segura um grito histérico, transformando-o numa risada escabrosa. Ela sempre riu de Mercedes, desde que ela insistiu na ideia de que McCartney havia morrido e sido substituído por outro artista. Após observar atentamente a sala, ela nota inúmeros trechos de músicas rabiscados na parede. Em especial, fortemente destacado, ela percebe a frase "Hey, Jude, don't be afraid". Valerie passou a perceber, na sala escura com letras brancas cintilantes, inúmeras frases de "Hey Jude!", música que Mercedes sempre ouvia quando ficava triste. Valerie sente uma sensação estranha, e percebe que a sala escura onde estava, repentinamente, mudou de forma. Agora, era uma sala em cores vibrantes de azul, dourado e amarelo escuro. O fantasma de Paul McCartney sai da pilha de ossos no chão, gritando algo como "Joooooooooohnnnn". Valerie gela, até perceber que os trechos de música sumiram. Agora, o quartinho não era muito maior do que uma pequena despensa. Um lugar claustrofóbico com uma única frase, pintada de vermelho claro na parede. "Working for her men, she brings home her pay". Enquanto lia, Valerie sente algo pingar em sua nuca. Ao olhar para o teto com uma expressão de pavor, o cadáver de Jonathan se encontrava pregado ao forro da sala. Seus nervos e músculos formavam, na parte do teto ao seu lado, a frase "For love, for love". Valerie engole a ânsia de vômito, sai da sala e certifica-se de não olhar para trás.


Andando pelo salão da casa, Valerie decide rumar ao corredor. Logo que entrou no lugar pouco iluminado, encontrou-se com um rapaz negro, muito jovem e magro. Vestindo um blazer Azul-Marinho com botões brancos, uma camisa florada com detalhes em preto e uma calça Jeans azul. Ele estava limpando o braço de uma Strato amarelo-claro, enquanto cantarolava um ruído semelhante ao som do pedal "uwauaw".

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