Já no palácio, eu organizava os preparativos para a ordenação dos quatro homens. A julgar pelos últimos eventos, este seria mais um a nos dar dor de cabeça. Apesar dessa sensação pessimista, tudo estava conforme o planejado: banquete pronto, banda real preparada e o público entrando no salão.
Da mesma forma que no dia anterior, os quatro futuros cavaleiros encontravam-se na primeira fileira, logo ao meu lado. Fitei o juiz, sentado bem a minha direita. Seu olhar não parecia tão severo como de costume, mas triste, quase envergonhado.
A expectativa do público pela presença da rainha era visivelmente grande, assim como a desconfiança se ela realmente compareceria ao evento. A espada de nomeação e os barões de Pomal encontravam-se ao lado do trono real. A banda real tocou a corneta, dando início ao evento.
Como se fosse uma cópia do dia anterior, a mensageira real iniciou o evento:
− Sejam todos bem-vindos à cerimônia de ordenação dos quatro novos cavaleiros. São eles: os soldados Mariano Carbone e Damiano Testa, que prestaram grandes serviços à Torim na guerra contra o Reino de Lume; o juiz Fausto Carrero, grande exemplo de idoneidade no cumprimento às leis; e o pintor Cande Cirino, talento reconhecido até fora de nossas divisas por retratar a realidade com fidelidade. Peço que todos fiquem de pé para receber a presença da soberana do Reino de Torim, nossa rainha Irene Lecce.
As cornetas da banda real foram abafadas pelas palmas e ovações da multidão. A rainha, que caminhava auxiliada pelo ouvidor real, estava menos sombria que na sua noite de coroação. Usava um vestido vermelho mais leve que da outra vez, e andava com menos de dificuldade. A bizarra máscara de gesso, porém, continuava em seu rosto. A monarca sentou-se em seu trono. Apesar da aparência mais saudável, não pude deixar de notar algo: sua respiração parecia mais ofegante que de costume.
O ouvidor real se afastou do centro do salão e Ana, a mensageira, retomou a palavra.
− Convido agora o soldado Mariano Carbone, combatente na guerra contra o Reino de Lume, a discursar antes de ser nomeado cavaleiro de Torim.
Orientei o corpulento soldado a se dirigir ao centro do salão. Em seu discurso, que durou quase 20 minutos, ele abordou sobre alguns momentos de tensão, tristeza e superação que vivera durante a guerra. Além disso, agradeceu à realeza pela honraria de ser nomeado cavaleiro. Ao terminar suas palavras, ajoelhou-se em frente à rainha, que encostou a espada em cada um dos seus ombros. O soldado passaria a ser chamado a partir de então de Sir Mariano Carbone.
Da mesma forma se seguiu com Damiano Testa, o outro soldado. Discurso emocionante e ordenação a cavaleiro. A grande expectativa, porém, seria para a próxima nomeação. Chegou a vez do juiz Fausto Carrero. Ana anunciou seu nome e passou-lhe a palavra.
− Boa tarde. Primeiramente, quero desculpar-me perante todos e, principalmente, à nossa soberana, a rainha Irene Lecce, por meu comportamento no dia anterior − disse ele, com um rosto visivelmente abatido. − Não foi de bom tom realizar suposições descabidas sobre o seu estado de saúde. Tenho a certeza de que tempos prósperos virão sob o seu reinado e é uma honra para mim ser ordenado cavaleiro de Torim.
Após seu breve discurso, o juiz se ajoelhou diante da rainha, assim como fizeram os dois soldados. Porém, ao contrário das vezes anteriores, a monarca fez um gesto com as mãos, chamando o ouvidor real. Ele se inclinou para ouvi-la e disse ao juiz:
− A rainha Irene Lecce pede sinceras desculpas ao senhor, mas ela acaba de sentir um leve mal-estar, e solicita que a baronesa de Pomal realize e ordenação em seu lugar.
Com um sorriso no rosto e um andar soturno, a baronesa caminhou em direção ao trono e retirou a espada das mãos da rainha. Em um rápido movimento, ela encostou o afiado objeto no ombro direito do juiz, com a lâmina perigosamente próxima de seu pescoço. O juiz parecia nem respirar. Da mesma forma ocorreu com o toque no ombro esquerdo. Ajoelhado, Fausto Carrero estava mais que constrangido, mas submisso. Aquela cena era visivelmente poderosa. Após os dois breves toques − que pareceram durar horas −, a espada retornou para o lado do trono real.
− Sir Fausto Carrero − disse a baronesa em alto e bom som −, estou bastante feliz por sua merecida ordenação e, ao mesmo tempo, triste, pois soube nesta manhã que será transferido para o reino vizinho de Sobral nos próximos meses. Saiba que seus serviços farão extrema falta ao Reino de Torim. Toda a família real lhe deseja boa sorte em seu novo lar.
De cabeça baixa e sem dizer uma só palavra, o juiz voltou à sua cadeira. A mensageira real retomou a palavra, anunciando o último nome, o pintor Cande Cirino. Após seu discurso, o artista ajoelhou-se em frente à baronesa para receber a ordenação, copiando o movimento do juiz. Ela, porém, num gesto cordial, solicitou que ele se encaminhasse para a frente da rainha. A monarca mascarada ergueu a espada com certa facilidade, encostando-a nos dois ombros de Cirino.
Não precisou ser dita sequer mais uma palavra: a rainha havia se recusado a nomear ela mesma o juiz. Fausto Carrero, recém-ordenado cavaleiro de Torim, fora humilhado publicamente. Um claro recado da monarquia a seus futuros inimigos: não haveria perdão aos seus opositores.
A mensageira real anunciou o fim da cerimônia e o início do banquete. Um certo medo tomou conta de mim. Começaram a chegar lagostas, carnes, frutas, pães, queijos e outros petiscos. Eu e todo o público, porém, sabíamos que o prato principal já havia sido servido: vingança.
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A Rainha de Gesso [CONCLUÍDO]
Mystery / ThrillerSelecionado para a Shortlist do Wattys 2018; 1° Lugar no Concurso Suspense 03, organizado pelo Wattpad; Condecorado no mesmo concurso com a estrela dourada, pelo empenho na divulgação da história; 2° colocado no 2° Concurso Rascunhos de Ouro. SINOPS...