- E não é que mesmo com o passar de todos esses anos você ainda comete os mesmos erros de principiante. - a voz de Elaine ecoava pelo vasto salão de música do orfanato e escola de artes municipal de Leeds. - Você é péssimo Thomas.
- Os anos que passaram para mim também vieram para você, e vejo que nem eles conseguiram te fazer deixar de ser tão arrogante, então, estamos quites. - Thomas não precisou olhar para trás para saber de quem era a voz familiar que vinha da porta. - Não imaginei que te veria aqui hoje, você sempre detestou esse lugar e as pessoas nele.
- Ainda com aquela sua mania chata de tentar ler as pessoas e adivinhar como elas se sentem. - Elaine anda em direção ao banco acolchoado onde Thomas tocava alguma música clássica no piano velho e desafino que o orfanato havia deixado para trás. - Gostando ou não, eu também morei aqui. Poucos dias descobri que iriam demolir o prédio para dar espaço a mais um campo de futebol ou algo do tipo . . . Blargh! - ela finge colocar um dedo na garganta para vomitar. - Coitadinho, aposta que a irmã Liz te fez tocar essa música tantas vezes que ainda deve ter pesadelos onde tenta acertar a ordem das notas. - sentando-se ao lado de Thomas e batendo os dedos em um punhado de teclas aleatórias diz - Posso?
- Todo seu. - Ignorando todas as provocações de Elaine, Thomas abre espaço ao seu lado para que sua antiga colega de turma mostre suas habilidades na música.
Essa era a primeira vez em sete anos que Thomas se encontrava novamente com Elaine. Sete anos desde o dia em que ela fugiu do orfanato no meio da noite, deixando um pequeno envelope embaixo da cama de cada um de seus colegas. Pelos anos que se seguiram diversos rumores e boatos surgiam pelo orfanato a respeito do paradeiro de Elaine, alguns diziam que ela havia virado uma prostituta e outros, mais criativos ainda arriscavam dizer que ela estava ascendendo no mundo do crime. Boatos sempre sem fundamentos que eram facilmente esquecidos quando alguém aparecia com uma história ainda mais fantasiosa e surpreendente. Porém os anos que se passaram fora gentis, e deram a Elaine a graça de perder seu jeito desleixado e mandão de garota brigona para encontrar a bela jovem inglesa independente e cheia de personalidade que estava ao lado de Thomas.
Os cabelos pretos que lhe escorriam pelos ombros faziam o contraste perfeito com sua pele alva, os olhos escuros ainda mantinham o mesmo aspecto calmo de primaveras passadas. Algumas mudanças em seu corpo chamavam atenção e davam mais vida para Elaine, as tatuagens espalhadas pelo seu braço eram como peças de quebra-cabeças distintos que nunca vão se encaixar, o balançar das suas botas pretas denunciava a empolgação que ela tinha ao estar tocando novamente naquele piano.
- Gostou? - pergunta Elaine assim que seu dedo indicador solta a última tecla pressionada.
- É diferente do que aprendemos aqui. - argumenta Thomas - Não é a mesma música clás . . .
- Eu não estou falando da música. - interrompe ela - Vi como ficou me olhando enquanto eu tocava, tem até uma expressão bem famosa para isso, não? Como é mesmo? "Comendo com os olhos" acho que é assim que falam. - brinca enquanto olha para ele.
Surpreso, Thomas leva uma de suas mãos ao cabelo e o deixa mais bagunçado do que já estava. Aos vinte e três anos pentear o cabelo todas as manhãs ainda não era um hábito frequente em sua vida. Com as bochechas de seu rosto coradas ele lhe da um sorriso debochado.
- Realmente. - admite - É difícil não ficar te olhando quando você parece um gibi ambulante com todos esses desenhos aleatórios que tem no braço. - Com os olhos agora voltados para a camisa de Elaine, ele nota como está amassada e com as mangas dobradas, como se tivesse dormido uns dois dias na máquina de lavar antes de estar em seu corpo. - Também fiquei tentando adivinhar de que banda indie americana é essa camisa, garanto que eles adoram tocar em pubs com temática inglesa a troco de esmolas e cachaça.
- Eu estava brincando idiota. - Elaine levanta e fica ao lado de Thomas que tem um olhar espantado ao ver a reação da colega. - Nossa, você é estúpido. - ela levanta ambas as mãos e lhe mostra os dedos do meio.
- Calma ai. - diz Thomas ao se levantar e se por na frente dela. - Eu também estava brincando ta bom, foi mal. - ao ver que ela continuava com as mãos levantadas e com um sorriso cínico no rosto pergunta - Que música acabou de tocar?
- "I need your body - Brooke Bentham", que por sinal é a mesma mulher que está na minha camisa de banda indie americana . . . babaca. - sussurra para si mesma o insulto direcionado a Thomas e em seguida abaixa as mãos.
Assim como Thomas teve um choque ao ver como os anos tinham surtido seu efeito em Elaine, ela também se surpreende ao ver mudanças no rapaz. Com o final da adolescência conturbado e cheio de descobertas. Thomas tinha gravada em sua pele uma lembrança que nunca mais poderia esquecer, uma grande e fina cicatriz se estendia por todo seu antebraço esquerdo, onde em Elaine haviam apenas as marcas de uma bela transição, nele haviam marcas da violência que encontrou nas ruas. Seu tórax definido podia ser notado mesmo coberto por sua camisa preta, as veias saltadas em seu braço mostravam que era um grande adepto da prática de esportes, porém a falta de hipertrofia nos músculos deixava claro que não ia em uma academia haviam meses. O que ambos notaram ao se encontrar novamente após esses sete anos foi a permanência da essência dos olhos de cada um, Thomas ainda tinha em seus olhos claros uma expressão calma e fria, para Elaine sentir aqueles olhos sobre si era como estar sendo encarada pela própria personificação da "indiferença".
- E então, está pronta para confirmar os rumores que corriam pelo orfanato sobre o seu paradeiro e me contar o que fez quando conseguiu sair daqui? - Thomas caminha até a porta e espera Elaine passar.
- Todas as coisas loucas que ficávamos imaginando ser possível fazer quando saíssemos daqui. - passando a mão pela parede do corredor principal, Elaine observa com nostalgia os azulejos que revestem o concreto. - Logo que fugi tive que procurar um emprego até conseguir juntar uma grana boa para viajar para as cidades vizinhas e não correr o risco de esbarrar com algum funcionário do serviço social pelas ruas. Comecei a trabalhar na lanchonete da Dina, aquela meio verde umas duas quadras daqui. - ela deixa escapar uma risada. - Perdi a conta de quantas vezes tive que fingir ter uma dor de barriga para ir correndo pro banheiro me esconder quando via que alguma das irmãs havia entrado na lanchonete. - ela para na frente de Thomas e o olha com empolgação como se a revelação que estava prestes a fazer fosse um de seus brilhantes momentos eureca. - Você sabia que a irmã Dafine e a Rosa fumam? Peguei elas fumando diversas vezes escondidas no bequinho perto do orfanato.
- Sim. - disse Thomas sem dar importância alguma para a notícia recém entregue. - De onde você acha que nós garotos conseguíamos nossas carteiras de Marlboro.
- Você está me dizendo que vocês subornavam elas para trazer cigarros para os garotos? - pergunta intrigada.
- Claro que não. - o olhar que Thomas lançou sobre Elaine expressava o quão idiota tinha sido essa pergunta. - Nós "pegávamos" delas.
- Aah . . . Entendi . . . Vocês roubavam.
- Não roubávamos. Apenas pegávamos.
- Sem elas saberem e sem devolver. . . é . . . roubavam mesmo.
- Pegávamos!
- Roubavam!
- Pe-gá-va-mos. - disse Thomas pausadamente. - vamos manter esse jeito sutil de chamar o ocorrido.
-Hm . . . - Elaine deu de ombros e voltou a andar pelo corredor. - Ta bom.
Os dois seguiram até o final do longo corredor principal em silêncio. Passaram pela entrada da biblioteca, onde agora não existem mais prateleiras, apenas alguns livros empoeirados no chão que foram abandonados na mudança. Andaram pela entrada principal do refeitório e pela temida sala do Padre Henry, Elaine perdera as contas de quantas vezes tinha ido parar nessa sala, com os joelhos ralados após mais um de seus tombos em suas tentativas de pular o muro para fugir do orfanato. Passar pela escadaria que leva ao segundo andar não trouxe boas lembranças para Thomas, uma vez que, aos dezessete anos em uma de suas possíveis últimas entrevistas de adoção, Fred Rourke vomitará em seu peito após comer treze cookies de chocolate e passar mal enquanto corria para subir as escadas.
- Espera ai. - Elaine parou pouco antes de entrarem no salão principal. - Se as irmãs não te davam cigarros e mesmo assim vocês "pegavam" - gesticula aspas com as mãos. - vocês . . .
- Entravam no quarto delas? Sim. - Thomas sorria pouco tentando não demonstrar o orgulho que tinha por conseguirem realizar essa façanha, somente órfãos sabem como é difícil ter acesso ao dormitório do padre e das irmãs. - Nunca achou que fôssemos conseguir um dia não é?
- Não! - ela olhava com espanto e entusiasmo para Thomas. - Como vocês conseguiram?
- Sabe como é, tem um ditado muito popular, deixa eu ver se lembro. Ah! É assim : "Um bom mágico nunca revela seus truques". - Ele brinca, coloca as mãos nos bolsos de sua calça jeans surrada e começa andar, parando logo em seguida ao tropeçar quando recebe um empurrão pelas costas. - O que foi? - pergunta sorrindo ao se virar para Elaine.
- Não vai mesmo me contar? - Elaine mantinha os braços cruzados frente ao peito.
- Hm. . . - com a mão direita em seu queixo Thomas fingia estar pensando. - Não. - e volta a caminhar rumo ao salão principal.
- Você. É. Tão. Chato! - diz apertando o passo para acompanha-lo. - Como é lá?
- O quarto delas?
- Não, o Big Bang. - Elaine revira os olhos sabendo que aquela pergunta tinha sido para irrita-la. - É . . .
Thomas para, se esgueira na parede e faz um sinal com a mão para ela fazer o mesmo, com seu dedo indicador ele pede silêncio, caminha devagar próximo a parede e analisa os dois cômodos próximos a eles no corredor.
- Acho que estamos sozinhos. - diz após o suspense.
- Claro que estamos sozinhos, quem diabos estaria em um orfanato abandonado 20:37? - Elaine aponta irritada para o relógio de pulso em seu braço.
- Da para deixar de ser irritante só por um momento? Está sendo difícil continuar sendo simpático com toda essa sua grosseria.
- Deve estar sendo difícil mesmo, porque você não está conseguindo. - Elaine aperta o passo em direção ao salão principal mas é parada pela mão de Thomas que segura seu braço.
- Como eu estava dizendo, estamos sozinhos, acho que não vai ter ninguém para te impedir de descobrir como é lá em cima. - ele solta seu braço. - Quer descobrir?
- Ta bom. - Elaine não se vira ainda, não queria mostrar para Thomas o pequeno sorriso que estava estampado em seu rosto.
- Ainda lembra onde fica o dormitório?
- Segundo andar, seguindo o corredor a direita depois de passar pelo dormitório dos garotos e da sala de pintura. - agora Elaine se volta para Thomas e mantém um sorriso desafiador como se estivesse se gabando por mesmo após todo esse tempo lembrar exatamente de todos os lugares daquele enorme prédio velho.
- Pode ir na frente então. - imitando um gesto de cortesia ele abre espaço para ela passar.
- Vamos fingir que não está fazendo isso apenas para ficar de olho na minha bunda enquanto subimos as escadas. - brinca quando passa por ele.
As escadas rangem conforme os passos pesados dos dois pressionavam as tábuas de madeira dos degraus, os corrimãos já não tinham mais o brilho do verniz que o padre pedia para os garotos aplicarem em todas as madeiras do prédio uma vez por mês afim de evitar uma infestação de cupins, as manchas de mãos na tinta clara da parede que antes eram motivo de diversos sermões e puxadas de orelha, agora parecem sumir em meio ao mofo que se apropria das proximidades da janela.
Subir para o segundo andar fez com que os corpos de ambos fossem tomados por um arrepio de nostalgia, era impossível andar por aqueles corredores e não lembrar do barulho dos sinos que as freiras carregavam para sinalizar a hora de descer e todas as atividades diárias que eles faziam.
- Ei Thomas. - Elaine foi a primeira a quebrar o silêncio, logo após parar na frente do dormitório dos garotos.
- Oi?
- Você ainda guarda? - Pergunta sem olhar para ele, mantendo os olhos fixos no enorme quarto vazio que antes era cheio de camas e barulho.
- O que? - Thomas nunca foi bom em se fazer de bobo para fingir não ter entendido algo, e não foi dessa vez que conseguiu.
- Você sabe . . .
- Olha Elaine, isso aconteceu tem tan. . .
Thomas para de falar no momento em que escuta ao longe o barulho de sirenes e vê que as janelas agora são iluminadas por duas cores, vermelho e azul.
- Ótimo, é a polícia. - diz Elaine já começando a apagar as luzes dos quartos pelos quais eles passaram e acenderam as luzes.
- Você está fugindo da polícia? - pergunta Thomas intrigado.
- Não só eu idiota, você também. - ela coloca as mãos na testa como se desaprovasse a falta de noção dele nesse momento. - Nós estamos invadindo uma propriedade do governo, isso é mais do que um bom motivo para você ter medo das viaturas lá fora.
O barulho das sirenes aumentava cada vez mais, os barulhos aos poucos se tornavam ensurdecedores, portas de carros eram abertas e batidas com força e passos podiam ser escutados próximos ao gramado do orfanato.
- Pronto, agora está tudo como naquele dia. - Thomas diz e ri ao lembrar da última vez que escutou o barulho de sirenes na frente do orfanato.
- Como o que? E a que dia? Do que você está falando? A gente tem que sair daqui agora. - Elaine inquieta caminha de um lado para o outro.
- Como no dia em que você fugiu, deixando apenas um envelope sob a minha cama. - disse Thomas a encarando.
- A gente precisa sair daqui. - Elaine não havia prestado muito atenção no que Thomas estava dizendo, estava ocupada demais pensando no que aconteceria se a polícia os pegasse ali, já tinham atingido a maioridade então as leis se aplicavam a eles como adultos já.
- E por onde você quer sair? Eles já estão na entrada principal e na saída dos fundos.
- Que ingênuo. - Elaine começa a amarrar o cabelo em um rabo de cavalo. - Eu já fugi daqui uma vez, sei como fugir de novo. Vem! - dizendo isso ela arrasta Thomas pela mão e ambos saem rumo ao final do corredor, apagando todas as luzes que deixaram acesas e sumindo na escuridão do encontro de salas do orfanato e escola de artes municipal de Leeds.
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Uma história de três capítulos
Cerita PendekUma história com três capítulos é curta demais precisar de uma sinopse.