O primeiro dia

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Eu a apresentei toda a casa, ao menos as partes que lhem diziam respeito, e afirmei.
- pronto... agora tem conhecimento do lugar, não o confunda com um lar... isso tudo será temporário...

E ela, como eu presumi, retrucou com sua impaciência jovem e inconveniente.
- está óbvio de que não me quer aqui! Então por que?- ela falava encarando constantemente com seus grandes olhos em aflição e lampejos de humidade que me irritavam. "Será que ela nunca para de chorar ?"

- veja, criança, eu queria lhe soltar nessas ruas para me divertir com os sons de destruição que faria enquanto te caçam, apedrejam e você os mata... - falei deixando escapar um pequeno sorriso involuntário enquanto me deliciava com essa possibilidade- mas você é Minha cria e o que quer que fizesse também me colocaria em perigo... seu estado ao chegar hoje prova que é, igual a qualquer recém criado, um desastre!  vai ficar aqui até que eu te ensine a ser discreta. Depois disso pode sair e fazer o que quiser! Recomendo que vá brincar no Sol...

A brincadeira perdeu a graça facilmente, visando que ela me encarava com aquela expressão pamonha habitual, e eu bufei com certo desdém

- e o que vem agora, "mestre"- ela cuspiu as palavras com um escárnio desistente e maravilhoso

- você eu não sei... deveria ler, se é que o sabe, eu tenho trabalho a fazer!

Ela começou a serrar os punhos de novo, tal qual a criança que era. Eu apenas fechei a porta e a deixei com suas confusões na biblioteca.
Finalmente estava sozinho de Novo, mas não em paz. As muitas implicações geradas por esse acontecimento eram infinitas demais, mesmo para minha mente e eu apenas me perguntava "como é possível que eu tenha errado?". Eu desci até meu antigo porão e caminhei por entre as relíquias de minha verdadeira era... aquilo era tudo tralha a está altura e mais me angustiava do que acalmava... mas eu, de alguma forma, gostava de estar ali. Admirava minhas obras de arte e peças de coleção. Tinha muitas lembranças ruins naquelas peças, lembranças que precisavam ser reforçadas para que eu não esquecesse de quem sou e dos erros que cometi. Tinha de me manter centrado neles para que continuasse escondido.
Quem imaginaria que eu poderia falhar desta forma. Tinha certeza de que nunca iria errar um alvo... mas não queria gastar tanto tempo pensando nisso. Já sentia o arrepio na minha pele, as sombras da noite, em algum lugar lá fora, já se dissolviam e era hora de descansar. "Talvez, com sorte, a imprudente saia durante o dia e ao acordar eu já não estarei mais com qualquer problema".
Entrei em meu antigo Caixão e o fechei por dentro me preparando para o descansar...

"Mas descansar foi algo difícil, uma vez que mergulhava de novo em angústias do passado. Agora estava ali. Bem em frente ao meu criador, em um escuro casebre velho e desgastado, com paredes arruinadas pelo tempo e um telhado despedaçado. O chão... repleto de sangue . Na época não sabia o que ele era, só sabia que ainda me amedrontavam aqueles grandes olhos azuis...
- tu vem ante minha presença... minha cria hahaha- ele sorria largamente com aqueles caninos compridos... os maiores que já vi, antes ou depois- vossa bagunça com sangue mostra que está selado o acordo com as sombras.

Eu olhava enauseado para mim mesmo... repleto daquelas manchas vermelhas e cheio de dúvidas e confusões quanto ao que tinha feito
- o que tu és? O que eu acabei de fazer?
- já sabes as respostas ao que me pergunta... rapaz.- o mais triste era que, na verdade, eu realmente sabia... as velhas histórias para assustar eram reais e isso me colocava agora como um grande vilão da maioria delas.

- então... se é verdade... acabe agora com isso! Não quero viver carregando Esta maldição.

- HAHAHAHAHA. teu destino Está selado, oh cria da noite... e, por muitos anos, carregará consigo minha mácula...."

Acordava novamente sentindo o ódio profundo. A risada ecoava em minha mente... após todos estes anos, a maldição sobre mim imposta ainda perdurava... eu não podia ser morto e estaria eternamente condenado ao sofrimento.
  Ouvi um som peculiar e levantei-me do caixão. Já estava em plena forma de novo, mas não preparado para o que já imaginava que encontraria.
Subi as escadas com calma já sentindo a tranquilidade e conforto que perdura a alma quando meu território se aproxima... sem olhar qualquer janela, já sabia que a noite estava chegando.
Lá em cima tive uma pontada de desgosto.
- que maldição seria esta?- a biblioteca se encontrava um desastre e livros, muitas vezes mais velhos que este embuste, estavam espalhados pelo chão após uma das prateleiras ter caído.

- eu... bem.  O livro que você me deu é uma bagunça! Eu estava buscando dicionários para entender tantos termos esquisitos.- ela não parecia mentir e isso não diminuía minha vontade de queimar sua carne.

- pois deve tomar-te mais cuidado quando se trata de propriedade alheia... ainda mais sendo conhecimento alheio... quanto ao não entendimento. Não me surpreende você não ter os devidos estudos.

- está me chamando de burra?

- não! Estou te chamando de americana!- o sarcasmo me caía bem... a expressão de ódio nela me sassiava e diminuía um pouco de minha raiva.

Levantei a estante, facilmente, então Estalei os dedos, deixando que a noite em mim fizesse o trabalho e, um a um, os livros se colocaram em seus lugares.
A expressão atônita da jovem já não era novidade

- como fez isso?- boquiaberta ela parecia ainda mais abobalhada.

- a noite se manifesta de algum jeito em cada um de nós... um dia, com sorte, verá isso...- me virei de costas e pus a caminhar em direção a saída- venha... vou te dar algumas lições

Ela me seguiu pela escada de incêndio até o telhado, infelizmente não em silêncio... aquela menina tinha algo contra o silêncio.
- por que estamos subindo?
- por que a pergunta? Acha que levarei-te a tomar um sorvete ?- usei o meu habitual tom de ironia e, de novo, ela me presenteou com a expressão de raiva.
- o que te torna tão amargo? Parece uma criança querendo me fazer sentir mal a todo momento
- quem me dera ter o privilégio de poder ser chamado de criança... poucos vivos hoje teriam esse direito, criança
- fala com muita segurança para um esquisito que vive em uma biblioteca
- o mau de tua geração é não saber dar o devido valor ao conhecimento...
  Para minha sorte ela não quis debater... então caminhei até a borda do parapeito e observei o mundo a baixo...
- então?  Vai me treinar ou algo assim?- ela interrompia o agradável silêncio estabelecido com sua pressa- que nem em uma peça de cinema...
- não... você não irá sair pulando por prédios e quebrando coisas... se é o que está a pensar... já sabe que pode faze-lo. Não! Você irá aprender a entender a si mesma e ao mundo em teu entorno. Aprender a ser uma boa cria... discreta como a sombras... calada como a noite e fria tal qual o vento...- eu suspirei, a nostalgia em nada me caia bem, mas relembrar o velho clichê de meu criador após tantos séculos era demasiado chamativo a minha memória.
- então...- perguntou a criança após minha pausa- por onde começamos?
- pela primeira lição- me virei encarando-a com um breve sorrir- mas em nada isso lhe agradará


*Notas do escritor: olá crias da noite... me perdoem toda essa demora para postar o capítulo, mas tenho tido pouco tempo com a volta da faculdade e trabalho e blá blá blá etc... rsrs. Espero que gostem e que comentem qualquer coisa que acharem interessante. Boa leitura :")*

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