1.3. Febre.

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Há muito não tínhamos mais água encanada. As usinas de abastecimento de água devem ter parado de funcionar automaticamente em certo ponto - o mesmo que aconteceu com as usinas hidrelétricas. As águas potáveis rapidamente se esgotaram e tivemos que nos acostumar com as águas puras de rios e lagoas.

Não muito distante da Biblioteca, em meio às arvores espessas do bosque que nos cercava, havia uma lagoa. Uma vez por semana, nos organizávamos em equipes e íamos até à lagoa para abastecer nosso estoque de água. Tínhamos quatro caixas d'águas grandes e elas eram suficientes para passarmos o restante da semana com tranquilidade - às vezes até mais do que isso. Ainda assim, tínhamos uma política de racionamento de água: todos tinham direito a um banho por dia. Nada além disso.

Foi de comum acordo que essa política era necessária. Esse foi, de longe, o menor dos nossos problemas. O pior, é claro, foi a comida. Quando Marc e eu nos juntamos ao descobrir sobre a disseminação da Praga, não medimos esforços para armazenar o máximo de comida possível. Mercados, casas, shoppings, conveniências... levávamos tudo o que encontrávamos pela frente.

O que acontece é: se você decide se juntar à um grupo - o que pode ser muito útil em situações como essa - você não pode ter o privilégio de ter tudo só para si. Marc e eu precisamos aprender a dividir tudo aquilo que havíamos conseguido e foi o suficiente para manter nosso grupo confortável por certo tempo, mas o estoque acabou e agora a fome é mais assustadora para nós do que as criaturas nojentas que nos encaram com olhos famintos.

Outro problema acabou se agravando conforme o tempo passasse. Não tínhamos remédios ou tratamento para enfermidades, então simples febres acabaram matando muitas pessoas que conhecíamos. Em geral porque significava que a pessoa estava com alguma doença que não podia ser tratada. A falta de medicamentos também se mostrou um problema para o nosso grupo.

Era o que estava acontecendo com Danica. Há duas semanas a menina queimava de febre e não havíamos nada que pudéssemos fazer. Sua mãe, Vesna, chorava por dia e noite, sempre escondida da filha. Quando entrei na Biblioteca, notei que a menina continuava no mesmo lugar que estava há duas semanas. Dessa vez, tinha a cabeça apoiada no colo da mãe, que aninhava seus cabelos. Danica tremia os dentes e seu rosto suava frio. Ela parecia dez anos mais velha agora.

−Oi, Vesna. - Me abaixei ao lado das duas e passei a mão sobre a testa de Danica. Estava muito quente. - Algum progresso?

Vesna balançou a cabeça e mordeu os lábios, segurando o choro.

−Ela só parece piorar. - As palavras pareceram agir como uma ignição para as lágrimas de Vesna. - Não sei o que fazer, Silver. Esse sentimento de impotência, eu.... Sinto que estou deixando-a morrer.

Segurei a sua mão sobre os cabelos de Danica e tentei abrir um sorriso.

−Ela não vai morrer. Vamos dar um jeito. Ouviu, Danica? - Ela levantou os olhos cansados para mim e assentiu, mas não parecia acreditar muito naquilo. - Você vai sobreviver.

−Você... - A voz de Danica era fraca e suave e um pouco enguiçada pelo tanto de tempo que permanecia em silêncio ali. Ela limpou a garganta. - Conseguiu comida?

Sorri.

−Um montão.

−Se tiver uma caixa de Sucrilhos... - ela puxou seu cobertor para próximo do queixo.

−Ele é seu. - Afirmei. Fiz um rápido afago em sua cabeça e me levantei. Do outro lado da Biblioteca, Marc parecia preocupado.

−Como ela está?

Suspirei.

−Nada bem.

−O que será que ela tem?

−Uma infecção, provavelmente.

−Se esse for o caso - Marc tinha os braços cruzados sobre o peito. - que tipo de remédio ela precisaria?

−Eu não sei. O que sei é que ela está sentindo dores e não admite. Se conseguíssemos algum medicamento de venda livre talvez ajudasse. Digo, não sabemos o que ela tem, mas ficar vendo Danica dessa forma é terrível. Talvez um paracetamol, um ibuprofeno... algo que ajudasse a diminuir sua dor.

Marc observava em silêncio enquanto Verna cobria a filha com mais um cobertor. Ela provavelmente passaria a noite descoberta para que Danica se sentisse mais aquecida.

−Podemos procurar amanhã. Pela manhã. - Ele olhou para mim, esperando por uma resposta. Os olhos de Marc eram de um azul profundo e magnético. Sempre bastou um único olhar entre nós para que entendêssemos o que o outro dizia. Acho que é o tipo de coisa que acontece quando se possui uma ligação tão forte com alguém.

Eu balancei a cabeça, concordando.

−É um encontro.

Marc assentiu e deu as costas em direção à sala de leitura - que transformamos em dormitórios. Antes, porém, eu segurei o seu pulso e ele parou. Seus olhos olharam primeiro para a minha mão e, só então, para os meus.

−Silver...

−Não estou com um bom pressentimento. - Eu havia conquistado sua atenção pois ele voltou alguns passos. - Estou com medo, Marc. É sinal de fraqueza admitir isso?

Sem dizer nada, ele me puxou para um abraço. Rápido e não muito intenso, mas o primeiro abraço que dávamos em muito, muito tempo. Naquele momento, não me senti em um apocalipse zumbi. Marc e eu ainda éramos apenas melhores amigos, encontrando-se em algum bar num final de semana chuvoso, apenas para despistar olhares e, então, sairmos em missão.

Ele se afastou e segurou o meu queixo com delicadeza.

−Vai ficar tudo bem, Tatuzinho.

Tatuzinho. Não consegui conter um sorriso. Esse era o apelido que Marc havia me dado quando nos conhecemos. Eu era apenas uma Iniciante e ele havia admirado minha habilidade de me camuflar na terra. Tudo aquilo parecia tão distante agora. Os BlackSouls pareciam para mim apenas um grupo de amigos agora. Bem, não era nada disso.

−Acorde cedo amanhã.

Ele beijou o topo de minha cabeça e se afastou. Me encostei na bancada atrás de mim e só então percebi que Danica havia conseguido dormir. Horath e Melanie passaram por mim, cada qual carregando um balde de água. Só então percebi que eu ainda não havia tomado banho e bastou que eu aproximasse minhas narinas de minha axila para que eu saísse em busca de um balde de água imediatamente.

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