Capítulo I

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Existem algumas coisas que são simplesmente difíceis de compreender, por mais que eu tente. Não consigo, por exemplo, entender o drama que certas pessoas atribuem a eventos corriqueiros, ou por que algumas escolhas simples são associadas à dúvida e à histeria.

Depois de muita observação, cheguei à conclusão de que o difícil não é escolher, mas aceitar sua escolha. Olhar racionalmente as opções disponíveis e decidir para qual você está mais voltado é um processo lógico, em geral instantâneo. Na maioria das vezes, a escolha foi feita no momento em que você pensou nela. Entre o pensamento e a ação existiu apenas um desgaste desnecessário para aceitá-la.

Dito isso, é inconcebível que minha irmã consiga demorar uma hora todos os dias para se vestir. Principalmente considerando que temos de usar um uniforme, fato que deveria diminuir as opções drasticamente.

Quer dizer, isso seria verdade numa escola normal e numa cidade normal, onde você usaria um uniforme com direito a uma calça brega de helanca e uma camiseta com a logo da escola, mas não na cidade de Tormento.

Minhas primas Sy e Regi fizeram uma parceria inusitada há algum tempo e, graças à ferocidade de suas intenções e ao prestígio do nosso nome, conseguiram banir as calças horrendas, deixando a parte de baixo à escolha do aluno. Trocaram também a camiseta, com a imagem da santa padroeira da cidade, por uma na qual as siglas da escola ficavam ampliadas por uma lupa no meio de um jogo de caça-palavras, e ainda assim, a camiseta estava sujeita a personalizações. Resumindo, havia uma restrição das opções, mas minha irmã e minhas primas eram extremamente criativas e haviam feito uma dúzia de novas camisetas a partir da matéria-prima.

E aqui estava eu, sofrendo as consequências do excesso de oportunidades, deitada no sofá da nossa pequena sala enquanto esperava Babi, minha irmã mais nova, perdida em algum lugar do segundo andar entre saltos e tecidos. Uma vez que a televisão estava de mau-humor de novo, me restava analisar o padrão das ranhuras na madeira escura do teto alto, pintada toscamente de branco pelas mãos amadoras do meu pai, muitos verões atrás, quando ele mesmo não tinha muito para fazer. O mau-gosto podia ter sido facilmente consertado pelo nosso caseiro, Juan, há muito tempo, mas minha mãe não se preocupava com essas coisas.

Quando olhar para aquela tinta branca começou a doer demais dentro de mim, desisti de esperar pelo impossível. Minha irmã nunca se decidiria e apareceria correndo vestindo qualquer coisa, no último momento possível. Pelo sim, pelo não, eu decidi por esperar minhas primas. A Mô deveria ser capaz de me distrair.

Eu já estava pronta há horas, como acontecia todos os dias: acordar, escovar os dentes e se vestir. Banal. Simples. Mas não para as Hoffer, mulheres com talento nato para o drama.

— Babi, tô indo.

Gritei, sem me importar se ela me ouviria, e saí porta afora.

A manhã acordava devagar como tudo nesta ilha além de mim. A neblina deixava impossível de ver que cor o céu assumiria hoje, mas eu podia apostar em um cinza melancólico. Ainda que não houvesse vento e o mar estivesse sem ondas, senti um ar gelado subir por entre minhas roupas, em pleno verão.

Pois é, o tempo não é confiável no Sul, muito menos tão ao sul como estamos.

— Bom dia, seu lindo! – Disse docemente, num sussurro.

O clima não tinha ares de que iria mudar tão cedo, mas isso não dizia que eu devia faltar com educação ao meu velho amigo, o mar. Com certeza, não devia ser sua culpa ele continuar um pano de liso, como nos dias anteriores. Conhecendo-o como só eu, ele devia estar irrequieto pelo nosso reencontro.

A trilha entre as casas da ilha é curta e nada complicada, a mata não invade o caminho de areia e pedras, e a luz sempre consegue se infiltrar pelo entremeado complicado de galhos ao alto, deixando-a ainda mais visível. Cumprimentei silenciosamente a estufa, ao passar por ela. Não foi algo tão caloroso quanto o beijo que soprei ao oceano – afinal, esse é o território de Mô – mas se tem alguma coisa que sinto por essa escultura de vidro é respeito. Mesmo à distância, pude ver suas abóbodas envidraçadas, desenhadas pelo metal, elevando-se acima da copa das árvores. Se eu tivesse sorte, continuaríamos sem nos esbarrarmos tão cedo.

Herança de Sombras - Livro 1 - LuxúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora