Capítulo XX

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Eu não conseguia dormir de novo. Mesmo fechando as cortinas pesadas, escurecendo o quarto completamente, tomando um longo banho quente e um copo de leite morno e tentando ler um livro de poesias da Mô. Nada funcionava. A cada vez que fechava os olhos, eu só o sentia me abraçando, tão perto de mim e por tanto tempo como jamais esteve.

Não sonhara nada daquilo, tudo acontecera.

Benjamin não podia estar tão alheio a mim assim. Talvez Tui tivesse razão, ninguém se daria a tanto trabalho por nada, mas por que ele não tinha me beijado? Tanto no carro, quando nos despedimos, ou na Firefly, houve incontáveis oportunidades, mas ele não aproveitou nenhuma. Algo parecia fazê-lo hesitar. Lembrei-me de Tui mais uma vez, de algo que ele tinha dito no mar pela manhã sobre ele estar esperando para saber se eu voltaria ou não com Martin.

Pensar no meu amigo me deu outra ideia. Já que eu não ia dormir mesmo, coloquei o biquíni, esgueirei-me para fora da casa, corri à casa de barcos e peguei um dos jets que mantínhamos por ali. Se pedisse permissão, nunca me concederiam, então achei melhor pedir desculpas depois. De qualquer maneira, era uma regra idiota essa de não sair de casa aos domingos.

Tive de pular o muro da garagem no continente. Era preocupante como nossa segurança era fraca. Liguei o Cadillac. Ele estava abastecido, e Juan o mantinha sempre funcionando. Com pranchas a postos, rumei para a vila. Eu só podia imaginar o susto de Tui quando me visse surfando.

Esperei passar alguns quarteirões para ligar Bee Gees no último volume. A música era perfeita e me fazia pensar ainda mais em Ben.

Nem me dei ao trabalho de levantar a capota quando encostei. Todo mundo sabia que esse Cadillac era nosso, e se alguém o roubasse, o que era improvável dado à baixa criminalidade desta cidade, entenderia por que ele ficava mais tempo parado do que rodando. Ele nunca chegaria a Pelotas e teríamos de pagar o reboque de volta.

As ondas estavam tranquilas no início da manhã. Era muito cedo e a praia era toda minha, exceto pelo Lauro Louco.

Toda cidade tem um ermitão que ninguém sabe de onde veio, ou para onde vai quando não está as nossas vistas. Não se sabe seu nome, ou sua história de verdade, além das lendas que se criam. O nosso é o Lauro.

Há quem diga que ele more numa cabana no meio das dunas, outros dizem que ele dorme no cemitério dos barcos, e tem quem diga que ele é um boto. Esse é o pessoal que não entende nada de geografia ou fauna brasileira. Para mim, ele é um senhor estranho que, apesar da idade avançada, mantém-se com uma cabeleira platinada avantajada que desce em delicadas ondinhas até a metade de seu peito, sempre meio falando sozinho e, apesar de maltrapilho, nunca realmente sujo, o que era estranho. Ele me dava arrepios, e foi com grande alegria que percebi que ele se foi sem me notar.

Conforme o sol subia, cresciam também as ondas, e logo elas estavam ferozes, na medida certa. Só parei de surfar quando vi uma cabeça morena perto de um Golf preto sinalizando para mim. Eu não sabia o que Martin poderia querer, mas quem sabe poderíamos ser amigos ainda. Ele me encontrou no meio do caminho, sorrindo, e estava entrando com tênis e tudo na areia.

— Quando eu acordei e vi o mar assim, eu sabia que você estaria aqui.

— Você me conhece bem – disse, sem graça.

— Conheço, sim. Deve estar com fome.

— Só um pouco – admiti.

— O que acha de um almoço no Azul, em nome dos velhos tempos?

A barriga estava roncando e a falta de sono começava a me deixar meio tonta. Já fazia mais de vinte e quatro horas que eu estava acordada.

— Eu estou toda molhada.

Herança de Sombras - Livro 1 - LuxúriaOnde histórias criam vida. Descubra agora