Mulher

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Meu corpo se curvou.
Meus joelhos bateram contra o solo.
Senti o líquido quente escorrer pela minha face e pescoço, encharcando a gola da minha blusa.
Mais uma porrada nas costas. A dor subia da base da coluna e chegava ao pescoço.

Cuspo o sangue que já preenche quase toda a minha boca. Sinto meu corpo amolecer e tombar. O contato com o chão frio arrepia minha pele.

''Alguém me bateu? Não, eu não senti nenhum baque dessa vez.'' Penso comigo mesma."É agora que a vida passa diante dos meus olhos?"

A única coisa que me vem a mente é minha mãe. Hoje em especial ela repetiu 30 vezes ou mais que era melhor eu ficar com ela em casa. Quando eu disse que sairia mesmo assim, ela fez birra. Não dei ouvidos. Não me despedi. Apenas peguei meu casaco e saí porta a fora. Nem olhei pra trás. Não disse que a amava.

'' Ninguém virá.'' Essa frase se repetia cada vez mais em minha mente.

A escuridão aumentava ainda mais enquanto entre chutes e costelas eu fechava ainda mais os olhos e apertava ainda mais os braços em volta do corpo. As lágrimas começaram a cair. Me concentro na memória de minha mãe e fico ali paralisada.

- O que está acontecendo? - escuto alguém gritar ao longe.

Um sorriso se esboça em meus lábios. Os baques pararam, apesar da dor continuar irradiando de minhas costelas e quadril.

Eu precisava ver quem havia intercedido. Precisava saber quem tinha me ajudado, antes do meu corpo falhar de vez. Abro os olhos devagar, a essa altura, até a pouca luz do poste que mal iluminava ao redor incomodava meus olhos. Levanto um pouco a cabeça procurando pela pessoa que estava ali.

Não vejo nada.

- Você está bem? - o homem pergunta de forma gentil.

Aceno que sim com a cabeça, minha voz havia falhado poucos momentos depois de começarem a me espancar naquele beco.

- Consegue levantar? - ele pergunta ainda com um sorriso simpático no rosto.

Balanço negativamente com a cabeça. Por um leve segundo percebo um traço estranho no seu sorriso. ''Sera que estou ficando neurótica.''

''Relaxa Amber, vai ficar tudo bem. O pior já passou."

- Você consegue falar?

"Não vai ficar nada bem, com toda certeza não vai."

Balanço negativamente a cabeça.
Aquele traço estranho agora toma conta de todo o seu rosto. Um sorriso maligno se mistura com um toque escroto de perversão.
''O que será que ele quer? Porque não me deixou apanhar até morrer? O que mais ele poderia querer?"

Como que sacudindo por completo, meu cérebro pareceu se ativar inteiro. Um pensamento ruim percorre todo o meu corpo.
Ele se mexe rapidamente tomando uma posição em pé, ao meu lado.
Eu ainda estava deitada no chão, na mesma posição que ele me encontrara.
Quando ele se move lentamente, curvo meu corpo o máximo possível esperando por mais uma leva de golpes pesados proferidos contra o meu corpo.

- Calma princesa, eu não vou te bater.

Suas mãos vão de encontro a minha camiseta que logo é rasgada e atirada em um canto do beco. Enquanto sinto suas mãos passearem pela minha barriga, encontrando o cós de minha calça, um vento gelado passa pelo ambiente me deixando completamente arrepiada. É nesse momento que as lágrimas recomeçam a rolar de minha face, se misturando ao sangue que já estava secando na minha blusa e no chão.
'' Não tem mais jeito.''
Relaxo o corpo e faço o possível pra não demostrar nenhuma reação.
Jogada em um beco qualquer numa das maiores cidades do pais e sem motivo aparente.
Sair pra curtir uma noite com os amigos não devia ser tão perigoso assim. Mas escolhemos o lugar errado. Mas, parando para pensar, qual é o lugar certo para duas mulheres negras nas noites de São Paulo? Esse lugar existe?

Entramos num barzinho cheio de homem branco e barbie de plástico. A noite tinha acabado muito antes de começar. Não aguentamos nem 30 minutos naquele lugar.
Recebemos bilhetes, cantadas escrotas, passaram a mão na minha bunda. Quase beijaram a força minha amiga. era hora de ir embora.
Pagamos a conta. Seguimos para fora do bar. Coloquei minha amiga em um uber e esperei o que havia chamado pra mim. Estava do lado do segurança. Negão, 1,80.
''Não vai ter problema"
Doce engano, tudo ilusão .
Um dos meninos passou me arrastando pelo braço e causando os primeiros macucados daquela noite. Me arremessou da entrada do beco pra onde os outros já estava posicionados.
- Macaca!
- Volta pra senzala, escrava.Você entrou no bar errado, vadia preta.
- Se voce terminar viva a gente deixa voce ir.
- Mas não antes de arrombbar cada burado que o corpo dela tiver.
Me jogaram contra uma parede. Minha expressão continuava imutável . Eu não demonstrva reação, apenas aceitei os primeiros chutes e socos.
- A putinha não chora, não ri. Será que tem algo errado;
- Bicho não sente dor!

As palavras atingiam mais seu coração do que os golpes físicos. A dor maior estava no ego.

Aquele homem me virou de barriga para baixo, empinando o máximo possível minha bunda, para ter melhor acesso para a penetração.

Os minutos em que ele se deliciava com a cena da minha bunda para o alto, pareceram horas, semanas, meses. Eu só queria que tudo acabasse e eu pudesse ir embora.

- O que você tá fazendo?

"Outra voz? Ainda existe esperrança?"

O barulho parecia ser de uma briga ou pessoas se engalfinhando em poças de sangue e água.
De repente o silêncio absoluto reinou.
- Você está bem? Ele faz algo com você?
Balancei a cabeça em negativo, mais lágrimas caíam de meus olhos.
- Eu vou te levar pro hospital mais perto daqui, só vou sacudir um pouco porque vamos correndo.

Afirmei com a cabeca.

**********************
Em poucos minutos já havíamos chegado ao hospital e todos os socorros necessários haviam sido feitos. Ja haviam contatado minha mãe e eu já tinha a documentação da alta.
Como já havia amanhecido, mamãe ja havia ido trabalhar então Jane, a menina que me resgatou, prometeu me deixar em segurança em casa.
Vesti uma muda de roupa que mamãe havia me levado antes de ir trabalhar.
- Podemos ir Melody?
- Claro Jane.

Jane era uma menina muito forte, músculos muito definidos, mas o rosto finíssimo. Fiquei a admirando por alguns minutos antes de ter um estalo.

"Jane era trans!!!"

Melody olhou para o chão e seguiu metade do caminho sem trocar uma frase com Jane.
- Você já percebeu nao é? - jane pergunta ainda olhando pra frente, apertando com mais forçao volante.
- Você é um homem?
- Não , eu sou mulher, bebê. Todas as cirurgias já foram realizadas. Agora só falta terminar o hormonal.
- Você é linda e forte. - comecei a falar me esquivando dessa conversa chata - e não muda nada pra mim. Você continua sendo minha salvadora. Eu ainda te agradeço.
Fomos em silêncio o restante do caminho até em casa.
Quando chegamos, Jane me ajudou a subir as escadas e abrir porta. Depoi disso foi embora por ter assuntos urgentes para resolver.
Quando mamãe chegou em casa, repeti tudo o que me disseram , tudo o que fizeram e o que tentarm fazer.
Mamãe chorou junto comigo. E ficamos assim por um tempo.
Meus amigos não acreditam no que aconteceu. Mesmo de calça jeans, a culpa ainda era minha. como se eu tivesse feito errado em sair com minhas amigas.
Minha vida se tornou quase um inferno.
Eu sei o que aconteceu. Jane e mamãe também sabem e isso é tudo o que importa pra mim. Eu saí viva.
Agora eu posso lutar mais um dia.
Agora eu posso incentivar mais meninas que passaram por isso a superar e a viver mais um dia.

Querida MiragemOnde histórias criam vida. Descubra agora