Parte I

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— Eu odeio aula de laboratório, cara! — disse Nico Ferrer. — Qual o sentido de estudar com esses secundaristas?        Nós somos da turma avançada.
Absalão Tork ouvia a ladainha, mas não queria alimentar a futilidade do colega, no momento só pensava em uma coisa.
— Você pode reclamar pro seu pai —respondeu. — Agora com licença que eu tenho que falar com o professor antes da aula começar.
Nico ficou boquiaberto.
— Tudo bem — resmungou.
Professor Takashi Izumi revisava algumas anotações no seu biocomputador quando Absalão o cumprimentou.
— Bom dia, professor. Tenho algo que o senhor precisa ver — disse, empolgado.
O professor sexagenário estendeu a mão para cumprimentá-lo de volta.
— Bom dia, senhor Tork. Claro que sim, eu ficarei muito feliz em ouvir dos avanços de sua pesquisa. Por favor, venha à minha sala depois do almoço.
— Combinado, senhor Takashi. Mas antes vou transferir algumas anotações, por favor receba o link — Absalão movimentou os dedos no antebraço, apontando para o professor.
O endereço holográfico flutuou.
Aceitar arquivo de Absalão Tork?
Senhor Takashi aceitou — a barra de upload carregou. O arquivo continha relatórios de simulações.
— Vou olhá-los e depois discutimos.
— Obrigado, senhor.
— Agora busque um lugar, a aula já vai começar. 
O professor esperou que os alunos se acomodassem. 
— Bom dia, senhores. Hoje eu estou atarefado com alguns relatórios. Por isso vocês terão aula com a Marie. Aproveitem.

O laboratório escureceu, o símbolo da ONU surgiu — no centro da sala uma mulher de meia-idade, de óculos e voz mecânica.

— Sejam bem-vindos ao módulo de história clássica. Eu sou Marie 096 e estou programada para a disciplina de História Básica II. Por favor, aceitem o link antes de continuarmos — os alunos moveram os dedos e acessaram o material de estudo.
Nico bocejou, dando um tapinha em Absalão.
— Eu disse que era chato — sussurrou.
Absalão deu com os ombros e continuou a leitura.
— “há cento e cinquenta anos, nosso sistema solar sofreu uma sobrecarga de raios solares. Na época, nosso mundo não estava preparado...”
— A Marie travou — disse uma aluna.
As luzes acenderam.
— Desculpem, interrompê-los — disse o professor, pálido. — Eu não me sinto bem, preciso ir à enfermaria.
Takashi levantou-se com dificuldades, a mão apertada contra o peito, deu dois passos, e caiu.
O corpo enrijecido se debatia, a pele expelia sangue cor de piche.
Absalão tomou à frente.
— Nico, vá até a enfermaria e traga um médico aqui; você aí de camisa xadrez, ligue para o serviço de emergência e alguém me traz uma mochila, temos que elevar a cabeça do professor!
O rapaz colocou toda sua força nos braços de Takashi para evitar que as contrações musculares quebrassem seus ossos involuntariamente.
Nico voltou.
— Afastem-se! — disse o médico, abrindo uma maleta branca com uma cruz vermelha pintada nas laterais. Tirou uma pistola injetora e aplicou trimorfina no meio do peito do professor.
O efeito relaxante foi imediato, a convulsão controlada.
O professor acordou, fraco.
—Obrigado, garoto... — disse a Absalão.
— Não se esforce, professor Takashi — disse o médico, preparando outra dose de remédios.
— ... Eu sabia que podia contar com você se alguma coisa acontecesse comigo.
O rapaz fez um meneio com a cabeça, a aula terminou.

***

Na cantina não se falava de outra coisa. A academia inteira sabia como o esquisitão do instituto de biomedicina salvara o professor Takashi — um ato louvável, mas não bem visto.
Afinal, Takashi era mais um entre as centenas de doentes da Praga — e não havia nada pior para um cidadão de Atlas do que ser portador daquela mazela.
As consequências eram desastrosas, sabia Absalão. A demissão do seu mentor era uma questão de tempo.
— Você é um herói, cara — disse Nico, logo atrás de Absalão, na fila do buffet.
No entanto, Tork estava aborrecido.
— Eu não sou herói. Só fiz o que era óbvio. O professor ia sufocar com o próprio sangue se você demorasse a chamar o médico. Você é quem merece o crédito.
— Deixa disso e me passa o pudim — retrucou Nico.
Absalão soltou um sorrisinho forçado, e respirou fundo.
Fique no presente — pensou. — Você tem algo importante em mãos.

Krevlin Maltha era um rato e filho do prefeito. Entre os veteranos, todos conheciam suas falcatruas, as pesquisas premiadas plagiadas dos calouros. E infelizmente, ele caminhava em direção a Absalão e Nico.
— Ora, ora se não é o gênio das pesquisas biológicas, em carne e osso.
— Cai fora, Krev — disse Nico, fechado.
— Você não tem respeito por seu veterano, Ferrer? Não é melhor você correr pro seu pai? Isso aqui é coisa de adultos.
— Não enche, Krevlin. Não tenho nada pra conversar — disse Absalão, peitando o valentão. — Você não tem nada pra roubar?
Krev riu.
— Você tem alguma prova, Tork? Aceita que eu tenho mais prêmios, além de um lugar garantido no comitê. Mas você não passa de um órfão mestiço adotado pela família Ferrer.
Absalão cerrou os punhos.
— O que você disse antes de adotado?
— O quê? Mestiço?!

Absalão atracou no pescoço de Krev, jogando-o ao chão. Os olhos de Krevlin saltavam vermelhos, o rosto arroxeado enquanto em vão batia nos braços de Absalão.
— Ele não vale a pena, cara — gritava Nico. — Solta ele, vai. Deixa isso pra lá.
Dois seguranças apareceram quando os alunos se aglomeraram.
— Briga, briga, briga! — gritavam.
Um dos guardas puxou Absalão pelo pescoço, aplicando um mata-leão. Krev virou, tossindo. O pescoço cheio de marcas de dedos.
— Eu vou te pegar, seu merda! — ameaçava, quando esbarrou no diretor do comitê.
Victor Ferrer não era conhecido pela simpatia, mas pela frieza e rigidez com que tratava os assuntos da Academia de Engenharia de Atlas.
— Na minha sala! Os dois.

***

A sala de Victor cheirava a mofo, era sem luz artificial e a única janela estava semicerrada. Atrás da mesa havia uma estante abarrotada de enciclopédias. Tudo ali era um contraste em relação à arquitetura limpa e quadrada da academia.
— O que eu faço com os dois? — questionou o diretor, sério. — Ambos têm um futuro brilhante em Atlas, mas é inadmissível que fiquem rolando pelo chão trocando socos e ameaças.
Os olhos de Absalão ferviam de raiva. — Esse cuzão me ofendeu!
Victor o encarou.
— Sem linguagem vulgar na minha sala, senhor Tork. Eu não vou tolerar os seus disparates.
O rapaz se encolheu na cadeira.
Krev soltou um risinho, enquanto passava a mão no pescoço.
— Ele não pode andar entre nós, os civilizados, senhor Ferrer. Ele é um marginal, veja! — o rapaz mostrava as marcas de dedos.
Absalão olhava para Krevlin, a vontade de terminar o que começara na cantina queimava debaixo da sua pele. Não suportava a covardia do  adversário
O diretor acadêmico dobrou os braços, a testa abaulada, o queixo retraído.
— Uma semana de trabalho comunitário para os dois! E isso não é negociável, entendeu senhor Maltha? Não adianta pedir para que o prefeito me ligue. Agora, para fora os dois.
Os rapazes deram de ombros e saíram.
Quando a porta bateu, Victor levantou, certificando de trancá-la, a pouca luz do lugar contornava o rosto ossudo, dando-lhe um brilho sinistro. O diretor puxou um livro de capa preta com linhas que se cruzavam na horizontal e na vertical. Uma portinhola fez um barulho surdo quando abriu.

***

Passar a semana com Krev é um insulto. A disciplina de Victor beira a loucura — pensou o jovem Tork.
Após sair da sala de Victor, ele ainda apertou Krev na parede.
— Um movimento em falso e eu acabo contigo.
— Tente alguma coisa e eu faço o meu pai te expulsar da cidade, seu adotado de merda.
Absalão socou a parede, amassando a lataria que a revestia. Daria outro, mas o osso trapezóide espatifara, e a dor tirou seu foco sobre Krev.
O rato sorriu.
— Idiota, na próxima você tem que mirar melhor.
Absalão se deteve a mostrar o dedo do meio, o bom.
— Na próxima você não vai ter chance — sussurrou.
O dedo inchou rápido, precisava de ajuda médica. Achou que na sala de Victor, ainda perto, conseguiria alguma.

Absalão pôs a mão na maçaneta quando notou as luzes incomuns por baixo da porta.
— Que porra é essa? — sussurrou. Escutando chiados de estática, grudou os ouvidos na porta para tentar ouvir algo.
Victor gritava, mas sua voz soava distante.
De repente, silêncio.
O rapaz se afastou, então viu Nico saindo da sala do pai, sua expressão era dura como se fosse o próprio Victor.
— E aí, grande Abe! O que você faz aí sozinho? — Nico desconversou.
— Nada demais. Eu estava indo pedir ajuda pro seu pai, quebrei o dedo — respondeu Absalão. — Talvez ele tenha um kit de primeiros socorros.
Nico riu amarelo.
— Aposto que não. Vamos para a enfermaria cuidar disso.
Absalão assentiu, quando o sistema notificou. Era do hospital.
Takashi Izumi requisita sua visita.

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