Parte III

28 1 0
                                    

Jeffords Rodriguez chegou antes de todos. Aproveitando da ausência dos colegas, enrolou um pouco de junkie — e observou as piruetas da fumaça misturando-se ao ar. Ele sabia que lidar com um crime na mansão dos Ferrer era como pisar em ovos, podres e quebrados.
A porta abriu.
Acompanhou a aproximação de Sonjie, o empregado vestia um cachecol listrado de cores vibrantes.
— Bom dia. Você deve ser o senhor Jeffords, o detetive?
Rodriguez tragou uma última vez, depois apagou o cigarro no banco do carona, e respondeu — O próprio, e você quem é?
— Sou o mordomo de Montana Ferrer. Falamos ontem à noite.
O detetive saiu do carro.
— Sim, eu lembro de você. Qual a situação sensível que você me informou? Alguém pisou na grama? — gracejou.
Sonjie arqueou as sobrancelhas, a testa rugou.
— Acompanhe-me, senhor Jeffords. E não toque em nada além do que você precisará para seu trabalho. Mestre Victor deixou instruções claras sobre os limites do trabalho de vocês da polícia. Entendeu?
Claro que sim, seu bostinha arrogante — pensou, mas se deteve a balançar a cabeça.

O detetive pigarreou, o ar seco da montanha e o hábito de fumar deixavam-no rouco. Surpreendeu-se com o tamanho da escada de madeira escura no hall de entrada e com os objetos de decoração — no teto satélites amassados atraíram a sua atenção.
— Vejo que você é um admirador de artefatos, senhor Rodriguez — disse Victor, saindo de um corredor à esquerda enquanto apertava o botão da camisa.
O detetive pigarreou outra vez, nervoso. — Bom dia, senhor Ferrer. É uma honra conhecer alguém da fundação.
Ferrer estalou os dedos, Sonjie apareceu ao seu lado.
— O que deseja, mestre?
— Pergunte ao detetive Rodriguez se ele quer algo para beber.
O mordomo olhou para Jeffords.
— O que deseja beber, senhor?
— Um pouco de café, por favor.
— Com licença, senhores — disse Sonjie, e saiu.
— Os empregados de hoje em dia são tão displicentes, senhor Rodriguez. Está cada vez mais difícil confiar o cuidado de sua casa a alguém... — olhares se trocaram —, — mas diga, o que você sabe do que aconteceu aqui?
Jeffords afrouxou a gravata, pigarreou, e respondeu — Nada, senhor Ferrer. O seu mordomo não me deu detalhes.
— Ótimo, vamos ao terceiro andar então. O café fica pra depois.

O corpo de Greva estava rígido, os olhos opacos. Seu odor podre impregnava o banheiro e espalhava-se pelo quarto como tentáculos.
Assunto sensível, hein — pensou o detetive, depois mexeu os dedos sobre o antebraço. — Gravação ocular iniciada — o sistema notificou.
Victor aproximou-se, taciturno. Fez uma expressão de pouco caso diante da filha morta e puxou um cigarro do bolso da calça.
— Era minha filha. Morreu ontem. Meu tutelado a encontrou.
O detetive virou-se, preocupado.
Como investigar uma das famílias fundadoras? — pensou. Pigarreou, a garganta seca por causa do cigarro do Ferrer, e disse — Eu preciso chamar a equipe de remoção da necropsia e avisar o conselho — as mãos no bolso, a voz atravessada.
Victor riu, cínico.
— Senhor Jeffords, acho que o senhor não entende a situação. Eu não quero que essa morte cause mais problemas. Greva estava doente e morreu. Só isso. Escreva um parecer e declare que ela morreu por causa da Praga.
Rodriguez dobrou os braços, o suor desceu da testa.
— O senhor não precisa de mim... — estou ferrado — para fazer isso. Você é um dos herdeiros dos fundadores de Atlas.
Victor aproximou-se, Jeffords sentiu seu hálito quente e amargo.
— Eu sei que posso, mas não devo fazer. Eu quero que você faça — o dedo indicador no peito do detetive. — Você me entendeu?
O policial olhou para o chão, respirou fundo.
— Senhor Ferrer, isso pode arruinar a minha vida.
Ferrer tocou a orelha.
— Liberado — sussurrou.
Uma notificação do sistema informou Rodriguez.
Gravação apagada.
O detetive deu um passo para trás, estava encurralado.
— Como você fez isso?
Victor riu.
— Eu sou o legado dos fundadores, detetive.
Então saiu.

***

Não tinha saída, percebeu Charlize. O lugar era um cubo, no centro uma cadeira e mesa de cantos boleados. Ficou ali por quanto tempo? Não precisava a passagem do tempo, a agonia, o tédio, estava presa.
Uma portinhola abriu, uma coisa pequena arrastou-se, era branca, enervada, a boca roxa, sem olhos e nariz.
A moça sentiu um aperto no peito, a respiração pesada, e a cada passo daquilo suas mãos tremiam. Desejou que tivesse algo que ajudasse a se livrar do monstro.
Não se aproxime! — tentou dizer, mas a voz estava presa na garganta.
A coisa parou.
A portinhola abriu novamente. Dessa vez vieram duas, andavam de quatro e relinchavam. Pararam diante dela  — a visão das criaturas lhe embrulhava o estômago. Os movimentos de regurgitação intensificaram-se, então expeliu uma quantidade abundante de suco biliar.
As coisas gruniram, estenderam os bracinhos e beberam os rejeitos de Charlize.
Parem!
A sala ficou vermelha — um triângulo com sinal de exclamação flutuava. Várias portinholas abriram, mais daquelas coisas entraram, algumas brigando, outras se devorando para ter um lugar na beirada da poça de vômito.

Terra 2170 - Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora