Parte V

21 1 0
                                    

Charlize usava óculos escuros e uma faixa amarrada ao cabelo, do seu lado Sonje ostentava uma bandagem branca à altura do nariz.
— Que coincidência te encontrar aqui — disse a moça.
O rapaz respirou aliviado.
Alguns segundos a mais, e a identidade Izumi seria estragada pelos seus conhecidos. No entanto, o cachorro latiu a tempo.
— Pois é, não é — Absalão respondeu.
Sonje encarou o rapaz. Raiva e desconfiança se misturavam ao seu olhar.
— É uma grata surpresa, senhor Absalão. Você tem algo a tratar no aeroporto?
Abe colocou as mãos no bolso, depois passou a língua entre os lábios.
— Um amigo da academia viajou para Ymir, e eu vim em nome do meu grupo de pesquisa para a despedida. Uma formalidade boba entre os biomédicos.
Charlize abriu um sorriso bobo, deixando-se levar pela aparência desleixada do rapaz.
— Isso é  muito gentil da sua parte. Na Fundação de Tecnologia de Ymir, os alunos são reservados — respondeu, sem graça. — Sabe de uma coisa, acho que você gostaria de conhecer as instalações de pesquisa de lá, principalmente a estação Prometheus, onde fica nosso gerador experimental.
Absalão deu um passo para trás, surpreso.
— Mas é claro, senhorita Decaux. Você pode me adiantar algo sobre o gerador?
O sorriso da moça não lhe deixava o rosto — estava dopada notou Absalão.
— Física energética não é meu assunto favorito, mas um dia ouvi meu pai dizer na reunião dos fundadores de que isso poderia acabar com a tal crise energética das cidades. Que bobo, não é?! Eu não sei de que crise ele estava falando, porque tudo funciona tão perfeitamente.
Sonjie tensionou os ombros, depois tossiu.
— Senhorita, seu vôo já está pronto. Temos que seguir nosso caminho, como instruiu mestre Victor.
Absalão colocou os braços sobre Charlize.
— Bobagem, não é. Não há nenhum crise — respondeu o rapaz, cínico.
— Agora vamos para a sala de embarque.

***

— Onde você está? — questionou Victor. — Já chegou ao seu destino?
— Estou no aeroporto conforme a mensagem que você mandou — respondeu Nico, aborrecido. — Isso é realmente necessário, pai? Ela não falou nada demais. A gravação do mordomo prova isso.
Victor esmurrou a mesa à frente, questionamentos não lhe eram bem-vindos.
— Apenas faça, garoto! Eu não quero repetir o mesmo erro que cometi com Greva. Entendeu? Ou você faz isso agora, ou nosso plano pode fracassar se Jerome acessar as memórias da filha.
Nico ouvira em silêncio, a morte do namorado corroía sua atenção.
— Pai, precisamos conversar sobre Krev.
— Agora, não. Mantenha sua posição e fique em silêncio até a nave decolar. Depois faça o disparo mirando nas entradas de ar, isso fará com que o vírus se espalhe no interior da nave.
— Entendido, papai.

O compartimento de cargas abaixo da torre de comando era perfeito. Daquele ponto, Nico tinha visão da ponte de embarque, da pista de decolagem, e de quinhentos metros de todas as aeronaves em manobra de ascensão.
O rapaz viu quando a capitão Falcony cruzou a pista com as comissárias. A nave brilhava prateada sob a luz solar, nas laterais o nome StarBlue e o número de série ANVE-1317 pintados em letras garrafais.
Notando as entradas de ar logo abaixo das asas dianteiras, Nico mirou o rifle de longo alcance. Para o tamanho do alvo, calculou que dois cartuchos virais seriam suficientes, o resto do trabalho se daria em consequência do ar pressurizado.
Nada lhe poderia atrapalhar naquele momento. Escutou a chamada de embarque, aguardando pelo momento em que Charlize passaria pela ponte de embarque até a sua aeronave, e então a missão estaria concluída.

O binóculo acompanhava o abre e fecha da porta automática, o movimento de pessoas era intenso. Pilotos, comissários e técnicos entravam e saiam da galeria de passageiros. Apesar de a quantidade de vôos domésticos ser mínima, por compensação Atlas recebia milhares de voos comerciais todos os dias.
Por isso Nico redobrou a atenção. Era fácil perder alguém de vista na ponte de embarque.
Permanecendo firme na sua vigilância, uma notificação de chamada lhe tirou a atenção.
— Chamada de Simon Maltha?
O coração palpitou, as pupilas dilataram. A respiração calma, acelerou, e as mãos tremeram.
A trezentos metros estava Charlize, caminhando atrás das comissárias de Miranda.
O dilema lhe consumiu o ânimo. Atender à ligação ou abater seu alvo, remorso ou a fúria do pai.
Nico respirou fundo, piscou, e deslizou os dedos.
— Olá, senhor Maltha. Como posso ajudá-lo?
O homem do outro lado era tão belo quanto o filho — loiro, de barba comprida, e olhos antigos; um ser de cinquenta anos sob uma pele pálida.
— Eu sei o que aconteceu, seu merdinha!
O coração de Nico parou.
— Do que você está falando, senhor prefeito? Eu não entendo a sua acusação.
— Seu pai não vai te ajudar garoto. A força policial já está a caminho. Ouviu? Você vai pagar.
Nico desligou a chamada. Procurando Charlize, olhou para a ponte de embarque, depois para a pista de decolagem. Concluiu que a nave partira, e ele, um procurado.

Terra 2170 - Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora