A CARTA DE GUSTAVO

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Querida Família...

É realmente estranho começar a escrever uma carta de despedida assim. Não sei nem se algum de vocês ainda me considera parte da família. Mas espero, imensamente, que sim. Porque eu os considero, e sempre vou considerá-los, minha família. Mesmo depois de morto ainda espero que sejamos uma família.

Se vocês estão lendo isso significa que a tragédia finalmente aconteceu. Tragédia aos olhos de alguns. Libertação no meu caso.

Libertação de tudo que eu passei nesses últimos meses.

Desde criança eu sempre me senti diferente de todos vocês. Todos.

O Ricardo gostava de futebol e eu de revistas. E papai gostava mais de Ricardo por ele gostar de futebol e menos de mim por eu gostar de revistas. Era assim, sempre foi assim. Talvez vocês nunca tivessem percebido, mas eu odiava o jeito como me excluíam das coisas. Eu era apenas diferente. Mas queria, com todas as minhas forças, fazer parte da família.

E vocês me impediram de fazer isso.

Pai, eu sei que é difícil ouvir de um filho, do garotinho que você criou e viu crescer, que ele é gay. Que ele gosta de outros homens. Que ele não vai está no altar da igreja esperando sua noiva entrar. Nem fazer uma mega reunião para anunciar a gravidez da esposa. Eu sei que o senhor sempre me imaginou fazendo isso. Mas eu não sou assim, pai. Eu nunca fui.

O senhor me bateu. Me bateu! Apenas por eu ser quem eu sou. Acredite pai, a surra que eu levei doeu muita mais por dentro do que por fora.

Mãe. A senhora sempre foi um símbolo de fortaleza para mim. Você é uma mulher guerreira, firme e forte. Porém amável e gentil. Você nunca nem sequer havia levantado a voz para mim. Mas quando você descobriu que seu filho era gay sua voz de emudeceu. E... Deus! Como eu queria que pelo menos você gritasse comigo. Mas nem isso eu merecia, não é? Ver o seu olhar de decepção quando papai disse que eu era gay foi como levar uma facada no peito. Sua rejeição foi a que mais me doeu, porque desde criança sempre fui mais apegado a senhora do que ao papai. Eu achava que tudo ia desmoronar quando vocês descobrissem. Mas eu realmente, de todo meu coração, esperava que pelo menos a senhora fosse ficar ao meu lado. Mas a senhora não ficou. E isso tornou tudo ainda mais doloroso.

Ricardo. Você sempre me foi um exemplo. Quando eu era bem menor eu ficava observando o jeito que você andava só para imitar depois. Queria andar, falar, comer e sorrir do jeito que você fazia. Na minha infantil cabecinha aquela era a única maneira de chamar a atenção do papai. Ele gostava de está com você. Então se eu fosse parecido com você ele também iria gostar de está comigo. Isso não funcionou e eu falhei miseravelmente.

Acho que depois da mamãe seu olhar de nojo foi o que mais me afetou. Meu irmão mais velho, o mesmo que me abraçava quando eu sentia medo dos patéticos filmes de terror que a gente assistia, agora tinha nojo de mim. Eu esperei, embora não acreditasse com tanta fé, que você ficasse ao meu lado. Mas você também não estava lá quando precisei.

Você não sabe, não tem nenhum pingo de ideia, o quanto doía sofrer toda aquela zoação na escola. Era ruim porque ninguém ali me conhecia para me julgar, mas era pior porque a única pessoa que realmente me conhecia olhava para a cena e não fazia nada. Absolutamente nada. Quando os caras do time ameaçaram quebrar minha cara você estava lá, calçando a sua chuteira no banco. E então eu olhei para você, e sabia que você tinha escutado eles me ameaçarem. Por isso eu não disse nada, no fundo eu esperava você levantar e me defender. Porque eu era seu irmãozinho e você prometeu sempre cuidar de mim. E mais um pedaço do meu coração se quebrou quando eu vi que você não cumpriria sua promessa e os garotos sim cumpririam a deles.

Então passei a não frequentar mais o futebol.

Eu sei que na cabeça de alguns eu vou está sendo dramático demais. Mas é sempre na cabeça, porque se algum deles estivesse na minha pele saberia que a situação estava insuportável.

Vocês me mandaram para um psicólogo no intuito de me curar. Mas me curar de quê? Se eu não estava doente. Eu nunca fui doente. E não é uma lei federal que vai me fazer passar por isso. Vocês tentaram me curar, mas acabaram me adoecendo ainda mais.

Mas eu não os culpo por nada disso. Realmente não os culpo. A culpa é da mente fechada da maioria da sociedade. Dos tempos que vocês nasceram. E até mesmo da religião que vocês pregam de forma errada. Pai, você foi criado aprendendo que homem foi feito para mulher e mulher foi feita para o homem. Aprendeu que Deus criou Adão e Eva e não Adão e Ivo. Que na arca entraram apenas um casal (macho e fêmea) de cada espécie porque era o que Deus considerava permitido.

Você cresceu ouvindo isso e vai passar isso para as outras pessoas. Mas, de verdade, eu só consigo sentir pena de vocês, de todos. Dos que te ensinaram, de você, e dos que vão aprender com você. Todos vocês foram criados com ódio no coração aprendendo a sentir repugnância de pessoas que queriam apenas ser elas mesmas, ser livres. De pessoas, que assim como eu, só queriam amar e ser amadas. Por isso eu não te culpo, porque na sua cabeça você apenas achou que estava me ajudando.

Mas eu não preciso de ajuda. Eu não preciso de cura. Eu precisava de amor. Amor. Era a única coisa que eu queria. Mas vocês não me deram isso.

E agora é tarde demais.

Sei que vocês vão se arrepender de ter me tratado daquele jeito, mas espero que seja um arrependimento verdadeiro e não só uma crise de consciência.

Espero que quando me virem, com os olhos fechados e os pulsos abertos, vocês pensem no quanto eu gritei por socorro e nenhum de vocês me atendeu.

Espero que minha história não seja comentada nos cultos dominicais como um exemplo de uma alma que se perdeu do caminho. Espero que assim que o luto passar a minha verdadeira história seja contada como uma prova de que nada, além do amor, pode salvar a vida de uma pessoa.

Espero que vocês espalhem a verdadeira cura por aí.

Espero também, do fundo do coração, que cada um de vocês encontre a sua própria cura, a necessária para ser forte e se manter estável nesse mundo tão cruel.

Porque eu sei que algum dia, em algum lugar, eu vou encontrar a minha própria cura. E é essa a única que vai me salvar.

Família, Amo vocês do fundo do meu coração.

E sempre foi amar.

Vou sentir falta dos nossos bons momentos.

Me perdoem por ser quem eu sou.


Isso não é um adeus. Porque eu creio, do fundo do coração, que mesmo sendo quem eu sou estaremos juntos no que as pessoas chamam de paraíso. Espero que estejam curados até lá.

Então um até breve.

De seu filho e irmão, Gustavo.



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