Jogo individual

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Desperto lentamente com a voz de Letty e o barulho dos saltos dela, que não param de trotear de um lado para o outro do meu quarto. Enterro a cabeça na almofada sem vontade nenhuma de enfrentar o dia de hoje, mas Letty não está com vontade nenhuma de permitir atrasos, então volta a insistir:

- Luna, quero-te de pé imediatamente. - diz ela enquanto pega em peças de roupa, mexe em aparelhos, entra e sai da casa de banho. - O distrito dez tem que ser um exemplo, não vou tolerar falhas.

Farta de a ouvir, puxo os lençóis para trás e sento-me na cama enquanto esfrego os olhos. Só aí tenho coragem de olhar para junto à parede do lado oposto, onde sei que o vou ver. O rapaz parece não ter mexido um dedo desde ontem à noite, está exatamente no mesmo sítio, exatamente na mesma posição. E de lábios trancados, como sempre. Letty continua o seu monólogo interminável e eu levanto-me e fecho-me na casa de banho. Enquanto lavo os dentes e me penteio continuo a ouvir os resmungos dela, que entretanto começa a dar um monte de ordens ao meus Avox: fazer a cama, arrumar e limpar isto e aquilo, arranjar forma de substituir os cortinados por uns menos "odiosos"... Estou quase vestida quando ouço a porta a bater, finalmente ela foi embora. Quando estou pronta saio para o quarto e vejo o rapaz a arrumar a confusão que Letty deixou, e não há como não achar injusto, as pessoas do Capitólio estão sempre à espera que alguém trate do trabalho sujo delas, que façam tudo por elas, e não devia ser assim. Instintivamente, começo a ajudá-lo a pôr tudo no sítio, e se ainda há bocado ele evitava olhar para mim, agora os olhos verdes não descolam. Parece tentar perceber o que estou a fazer, talvez esteja a quebrar alguma regra (e sinceramente não quero saber se estiver, já me vão mandar para a arena, o que é que podem fazer mais?), mas rapidamente o ar desconfiado se transforma num sorriso discreto. 

Trabalhamos rápido, num silêncio confortável, e quando terminamos percebo que tenho que ir, caso contrário daqui a nada tenho Letty a entrar-me pelo quarto adentro. Dirijo-me para a porta, mas antes de sair dou uma última olhadela ao Avox (até agora sem nome), que também está a olhar para mim. Engraçado que, mesmo sem palavras, consigo perceber o agradecimento nos olhos dele, mas sinto falta de um obrigado, não consigo perceber porque é que ele recusa falar comigo. 

Quando vejo Gabriel à mesa no pequeno almoço só me apetece cavar um buraco para me enterrar. Depois da conversa de ontem e da forma como ele está a olhar para mim é impossível não questionar as suas intenções, será que ele sente alguma coisa por mim? Tento prestar atenção aos conselhos importantes sobre como agir nos treinos que Tashi dá enquanto comemos, mas é como se tivesse a cabeça noutro sítio, mais precisamente no distrito 10. Penso nos meus melhores amigos, as pessoas mais importantes para mim, em como devem estar preocupados, mas ao menos têm-se um ao outro. Eu sempre vi a forma como a Mia e o Peter olhavam um para o outro, sempre soube o que sentiam um pelo outro, e quando me despedi deles tive a confirmação. Se eu não voltar, eu sei que eles vão recuperar. Juntos. 

***

Estou encharcada em suor. Desde que cheguei ao centro de treino tenho dado tudo o que tenho, preciso de aprender o máximo que conseguir, preciso de estar preparada. Já passei por várias estações, algumas de armas e outras de sobrevivência, mas quando cheguei à das facas e comecei a treinar, é como se tivesse descoberto uma nova parte de mim que desconhecia. Já tinha tido a oportunidade de mexer em facas e ganhar alguma mestria na quinta, mas isto é completamente diferente. A quantidade e diversidade que há aqui é fascinante, os diferentes tipos de lâminas e tamanhos. Quanto mais treino os lançamentos mais viciada e determinada fico, a concentração está no máximo e concerteza já estou aqui há mais de duas horas, sem parar para descansar. A certa altura estou já a acertar no centro do alvo em quase todos os lançamentos, e sorrio satisfeita quando reparo nos olhares que os outros tributos me deitam. Nunca olhei para mim como podendo ser uma ameaça, mas confesso que sou muito melhor nisto do que pensava, afinal talvez tenha uma hipótese, talvez possa ganhar isto.

Decido fazer uma pausa para comer qualquer coisa, então dirijo-me à zona de refeições, encho o prato com tudo o que possa experimentar e sento-me sozinha numa das mesas com bancos corridos. Passados uns minutos ouço passos que vêm na minha direção, então olho para trás e vejo Gabriel, que sorri para mim. Não retribuo o gesto e viro-me para a frente, rezando para ele ir embora, mas ele faz precisamente o contrário e senta-se ao meu lado.

- Foi espetacular. - diz Gabriel, e eu olho para ele com cara de quem não percebeu. - O que fizeste há bocado. - esclarece.

- Ah, isso. - respondo, não querendo dar muita conversa.

- Não sabia que eras tão boa. Talvez me possas ensinar uns truques. - sugere ele enquanto chega mais perto e me pega na mão.

Levanto-me imediatamente da mesa com o coração acelerado (não sei se de raiva, se de outra coisa), nem quero saber da comida, e respondo com determinação:

- Ouve, não sei qual é a tua ideia, mas isto é um jogo individual, só um sai vivo. E se queres que esse "um" sejas tu, é melhor não me voltares a tocar, caso contrário não garanto que chegues sequer à arena.

E com isto viro costas e controlo-me para não ir a correr até à secção das facas. Quando chego ainda estou a tremer com o que se passou. Há alguma coisa muito errada com o Gabriel, eu sei que há. E eu não estou a gostar nada disso...



Hunger Games: a história por contarOnde histórias criam vida. Descubra agora