Já fazia um ano, acordar na pequena sala apertada, pintada de vermelho às paredes a apenas alguns metros de uma televisão obsoleta que já falhava em reproduzir as cores havia se tornado minha rotina, e bem como a televisão, minha vida aquele momento aos olhos das outras crianças parecia não ter cor, mas eu enxergava nela os melhores tons, desde o vermelho carmesim ao púrpura, ou além deles, e aprendia novas cores todo dia, ao abrir a porta que dava ao balcão da loja e ser brindado com o sorriso cansado de Mark pela manhã.
-Continua acordando cedo demais, Nathan. -apontou-me pães e leite, este tirado do próprio estoque da loja que ainda estava fechada a aquela hora.
A verdade é que eu não tinha tanto sono e era comum dormir 4 horas por dia após horas de televisão, mas Mark nada percebia, afinal de algum modo curioso, eu continuava a acordar com vigor e brilhante como se tivesse descansado metade da vida.
-Iremos ao oftalmologista logo que o dinheiro sobrar, apesar de Jack não ter dado essa atenção, você é quase albino de tão branco -cassoava carinhosamente da minha condição- e temo que seus olhos falhem como o de um albino.
Eu descordava. Enxergava muito bem, mal sabia ele. Mas admirava a preocupação que ele tinha comigo, tanto quanto o gosto bom do café da manhã, o qual eu não interromperia pra fazer objeções desnecessárias. Dilacerava o pão com avidez, já era o segundo que comia, quando ele assobiou (como era de costume quando surpreendia alguém ou era surpreendido), viu meus olhos brilharem em um tom de prata reluzente ao ver os documentos envoltos em plástico: meu registro de identidade, uma certidão de Nascimento (sabe se lá como Mark a conseguira 10 anos depois de seu nascimento), e outros marcos da burocracia dos Estados Unidos que me transformavam em números.
-Talvez pra ti ainda não seja grande coisa, mas isso faz de você um Roland assim como eu, e faz de você o herdeiro da loja quando eu partir. -a voz diminuira o timbre durante a frase, era evidente a melancolia relacionada a perda de seu filho, o verdadeiro herdeiro, anos atrás.
Mark era um homem velho, ostentava seus cinquenta anos, e os exibia no experiente e cansado rosto, as grandes mãos, vinte anos atrás, empunhavam lâminas assim como as de Jack, e vingavam do crime a morte de seu filho em um sequestro (Mark sempre fora lojista e isso atraiu olhos demais) embora isso tudo de nada tenha servido, ainda se sentia vazio até a chegada de Nathan, que tinha um ano de diferença do nascimento de seu filho biológico. Destes feitos apenas ganhara um espaço na história da cidade como o misterioso "justiceiro branco", mas a ele nada servia, tanto que não exitou em passar o posto ao hábil e cético Jacques Esme após recebê-lo da França, fluente na língua inglesa, e na língua das lâminas. Mark nunca soube de onde ele adiquiriu ambas elas.
-Um dia, se o destino permitir, limparei o nome de sua... De nossa família -corrigi sorridente, agora Nathan Roland, obstinado a honrar Darmian Roland, o filho morto de Mark.
Terminei o café num abraço ao meu mais novo pai, exalava felicidade quando juntei as coisas em minha mochila: o caderno escolar com capa flexível de papelão e desenhos geométricos, um estojo fino e contendo apenas o necessário, o que era pagável, e o caderno entregue de presente por Jacques a um ano atrás, tatealo ainda trazia nostalgia, me sentia seguro enquanto o carregava, tão seguro quanto o feroz Jacques Esme me fazia se sentir.
A ida à escola era talvez a única coisa tediosa em minha rotina até então, morava em um bairro não tão seguro, nem tão bonito, e andava mais do que gostaria ate chegar a grande escola cor de creme onde estudava, construída como uma fortaleza moderna, apresentava construções que lembravam torres pra abrigar cada série, e um extenso pátio no meio delas, onde mesmo em horário de aula, curiosamente sempre havia alguém. Não eram raras as vezes em que eu chegava com os cabelos num tom louro prateado ensopados de suor, no calor que fazia naquele verão, mas mesmo assim eram raras as vezes que eu chegava fedendo.
Me sentia Jacques durante todo o periodo letivo, já algum tempo após o início das aulas, meus hábeis olhos brancos não deixavam passar nada, eu absorvia o conhecimento com facilidade, sem me distrair com amizades as quais não existiam. Aliás era o contrário, eu era claramente diferente dos outros, desde meu aspecto absorto de conhecimento até fisicamente, muitas das professoras me achavam uma criança bonita, outras uma criança estranha.
E a segunda opção era unânime entre as outras crianças, se excluiam de mim bem como eu não fazia questão de me juntar a eles, me sentia acomodado a assistir todas felizes e imitar os sorrisos mais sinceros, oque fazia desde antes de Jack me achar. Mas nem todas as crianças eram tão bondosas ao ponto de só se afastar, algumas teimavam em me afrontar como ameaça, mas eu não me perpetuo nesse clichê aqui em meu relato, o treino de Jacques pra me "defender da vida" as anulavam, eu era forte e hábil demais, e quando juntavam várias, era inútil da mesma forma, eu era particularmente rápido demais também.
Ao fim da aula naquele dia, na porta da grande escola, terminava de guardar o material quando me deparei com a máscara, sempre a deixava ali, tinha um significado bizarramente grande pra mim. Mais cedo havia eu derubado três garotos que tentavam roubar meu lanche, ao ver a máscara foi irresistível a analogia: Eles como homens assaltando a joalheria;eu como Jack ou Mark, como "o justiceiro branco". Tirei ela da bolsa, com um sorriso empolgado que só uma criança inconsequente poderia esboçar.
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A Ordem Sem Nome - O Nascimento De Darmian.
Ficción GeneralA vulnerabilidade do ser humano traz a injustiça, a submissão traz a desigualdade, e tudo isso traz o crime. Mas nessa pequena cidade do Colorado, a humanidade moderna se depara com a justiça rústica do sangue por sangue, e se depara também com uma...