As árvores, as casas ou mesmo os carros estacionados não estavam cobertos de neve. Os flocos de aparência translúcida não caiam devagar, tampouco se acumulavam nas proximidades e ganhavam uma coloração branca, congelando lagos como o do Parque Ibirapuera ou cobrindo a cidade como um tapete alvo cobre um piso. Ainda assim, Jennifer caminhava pelas ruas de paralelepípedos de Vila Mariana como se enfrentasse o frio narniano e não o paulista.
Alheia à todas as luzes e enfeites coloridos — que agora se tornavam mais evidentes com a chegada da noite —, ela ajeitava as luvas quando o indie-folk que preenchia seus ouvidos foi substituído por O Velhinho, versão natalina cantada por Paula Fernandes e Gusttavo Lima para o especial da Rede Globo.
♪ Deixei meu sapatinho
Na janela do quintal
Papai Noel deixou
Meu presente de natal ♫
Jennifer puxou o iPod de um dos bolsos do sobretudo e apertou o stop. Me poupe dessa merda, certo? Retirou os fones de ouvido e parou em frente à casa de tijolinhos que lhe pertencia. Pelo visto seu cartão de crédito tinha mais uma vez excedido o limite e a conta do Spotify acabou não sendo paga. Estava rodando no plano free, que permitia ouvir músicas apenas no modo aleatório — e, por ironia do destino, e coloca ironia nisso, o serviço de streaming tinha colocado para tocar justamente a playlist Presente de Natal.
Está certo que para muitos o Natal era sinônimo de Papai Noel, estrelas, presentes, velas, presépio, guirlandas e ceia, mas para Jennifer tudo o que o 25 de dezembro representava era dor. Há exatos dois anos, ela perdeu a mãe para um câncer — e o pai já havia partido dessa para melhor há muito. Mais recentemente, no Natal passado, havia descoberto que seus dois rins já não eram mais capazes de filtrar os produtos do metabolismo de aminoácidos do sangue. Era preciso trocar pelo menos um deles. Simples assim, como trocar as peças de um computador estragado. A diferença era que não existiam muitas assistências autorizadas para se comprar ou trocar um rim. E mais, os seres humanos não nasciam com garantia. Foi preciso enfrentar o Sistema Único de Saúde — ironicamente, a única solução de Jennifer.
Em maio, a doença evoluiu e a jovem budista — que acreditava que sorrisos podiam evitar conflitos — descobriu que estava grávida e que as chances de o feto evoluir eram baixíssimas, caso seu estado de saúde não melhorasse. Já estava internada a uma semana e meia. O melhor a se fazer era não contar nada a Rafael — não queria que seu marido sofresse, não mais do que já sofria em vê-la ali, adoentada.
Mas alguma enfermeira acabou por dar com a língua nos dentes e quando Jennifer se deu conta já estava a caminho da sala de cirurgia para receber um rim novo e misterioso. Logo que voltou para o centro de observação, a jovem sorria. Tinha todos os motivos do mundo para sorrir, certo? Tudo ocorrera bem e seu bebê sobreviveria graças a um doador misterioso.
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Meu Natal Iluminado (Completo)
Short StoryIndependente das escolhas e das surpresas, o Natal é sinônimo de desejar boas festas e vivenciar momentos mágicos, meios fatais e repletos de paz, amor e muito carinho. Muitos estão em busca dos presentes que não conseguiram comprar a tempo, outros...