Capítulo I: A Partida

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A tarde estava quente e, vez ou outra, a leve brisa invadia a sala pela janela e abrandava o mormaço. Sentia-me cansado, pois havia passado o dia anterior desmontando móveis e os carregando até o caminhão de mudança, mas algumas poucas caixas ainda resistiam-se no canto da sala, amontoadas e empoeiradas. Consultei o relógio no pulso e me dei conta de que estávamos começando a nos atrasar.

Alguns equipamentos esportivos estavam espalhados pela casa, mas a minha mãe não tinha ideia de onde colocá-los. A Kombi estava cheia e as outras caixas que iriam para o caminhão estavam inteiramente abarrotadas. Sugeri que fizéssemos um bazar de garagem, mas ela não gostava da ideia de se desfazer das coisas daquele jeito e sempre arrumava alguma utilidade para tudo. Ou os doava.

Voltei para o meu quarto e escancarei a porta. O chão quadriculado e encardido por manchas de café, era desnivelado o suficiente para fazer com que a minha coleção de bolinhas de gude se concentrasse alinhada rente à parede, na parte esquerda. As infiltrações no teto assemelhavam-se ao mapeamento da Micronésia, e as trincas dispostas nas paredes pareciam o registro de uma tempestade de raios tenebrosa. Sem as cortinas, os raios de sol iluminavam o ambiente e refletiam no único objeto que eu ainda não havia guardado: um aquário retangular.

A minha mãe passou para o outro lado do corredor, totalmente ansiosa, despertando a minha atenção. Seus cabelos louro-agrisalhados estavam tão grandes, que ela precisava de umas sete ou oito voltas para comportá-los em um coque. Seu macacão rosa-claro estava coberto de graxa e o suor escorria por seu fino nariz como uma torneira mal fechada. Seus olhos fundos e cansados percorriam os cômodos da casa, esforçando-se a encontrar um modo de ajeitar as raquetes de tênis e os capacetes de ciclismo na caixa de ferramentas. Ela ficava completamente eufórica antes de nos mudarmos. Todas as vezes.

— Léo, pode vir aqui me ajudar, por favor? – ouvi a voz de Clarisse, que me sorria gentilmente.

Ela estava em frente à porta do quarto, equilibrando uma pilha de roupas por cima de alguns livros coloridos.

— Pensei que já tivesse terminado de empacotar tudo.

— Há sempre mais coisas do que imaginamos – ela respondeu, fazendo um leve e certeiro movimento para evitar a queda de uma de suas peças de roupa. — Sempre.

Aproximei-me e segurei um volumoso apanhado de roupas. Suas calças eram largas e quase todas as suas camisetas eram claras e de organizações filantrópicas. Clarisse participava de ações para ajudar órfãos, levantava fundos para hospitais carentes e para abrigar sem-teto e, ainda, era a presidente da AII – Amigos que se Importam com os Idosos. Passava boa parte do tempo fora de casa e tinha apenas doze anos. Doze anos e tinha muito mais responsabilidade do que eu.

Negar que pensar em todas aquelas coisas faziam com que eu percebesse o quão mal eu administrava o meu tempo, era inútil. Esforçava-me para ser um bom aluno, fazia panfletagem de promoções de pizzaria para ajudar na casa e mantinha o meu quarto organizado. Eu sabia que não eram coisas tão extraordinárias, das quais me orgulhava ao ponto de querer colocá-las em meu currículo ou estampá-las em uma camiseta, sequer comparavam-se ao que Clarisse fazia, mas era tudo o que conseguia e podia fazer.

Assim que a ajudei a colocar as coisas no porta-malas da nossa velha Kombi, Clarisse juntou-se à minha mãe, que passava as últimas informações ao novo proprietário, deixando-me sozinho. Vendo-as juntas, seus traços tornavam-se ainda mais semelhantes e singulares. Os louros e ondulados cabelos de Clarisse esvoaçavam-se na direção do vento, enquanto ela tentava comportá-los com as mãos. Seu queixo e o seu nariz eram delicados, mas quase imperceptíveis em seu fino rosto. Seus olhos verdes reluziam um brilho incomum, como se ela pudesse enxergar algo que ninguém mais conseguia.

Respirei fundo, ergui a cabeça e tentei absorver o máximo de detalhes que conseguisse da casa, antes de voltar para lá e pegar as últimas coisas que nos pertenciam. Não sabia se a veria novamente, nem mesmo entendia o porquê do sentimento de perda. Com passos longos e demorados, caminhei até a minúscula e vazia sala, e suspirei. As paredes do corredor, assim como grande parte da casa, eram ornamentadas por diversas figuras originárias de rachaduras, as quais podiam ser facilmente confundidas com uma arte abstrata. Dei mais alguns passos e, próximo à porta do antigo quarto de Clarisse, algo incomum chamou-me a atenção. Estava diante de um adolescente alto, de olhos castanhos e cansados e expressões sérias. Seu longo cabelo escuro estava tão mal arrumado, que não me impressionaria se dissesse que não o lavava. O rapaz usava um enorme casaco xadrez por cima de uma regata preta, que não combinava em nada com o jeans rasgado e o tênis marrom. A armação escura de seus óculos era muito grande e suas lentes estavam sujas e embaçadas. Fosse pelo cansaço do dia ou pelo estresse da mudança, demorei alguns segundos até perceber que aquele garoto era eu, refletido no espelho emoldurado de verde-aspargo.

Encarei-me por alguns instantes, tentando entender quando havia me tornado tão desleixado. Quase não reconhecia o meu próprio reflexo e não sabia se tinha vontade de mudar de aparência. Não havia, em meu rosto, um traço sequer de felicidade ou o desejo de viver. A única certeza que aquela figura transpassava, era a de que, a cada dia, gostaria de se parecer menos com o pouco das lembranças que tinha do pai.

Meu pai havia nos abandonado quando eu tinha dez anos, levando tudo o que possuíamos, inclusive parte dos meus sonhos. Não fazíamos ideia de que ele desviava dinheiro do banco em que trabalhava, nem mesmo a minha mãe, que era a contadora. Apenas recebemos uma intimação para desocupar o apartamento e, mais tarde, a demissão da minha mãe. Os poucos bens que ainda possuíamos foram vendidos para pagar dívidas, obrigando-nos a receber o auxílio do governo para sobreviver.

— Te procurei por todo o canto! – Clarisse exclamou, ofegante, fazendo com que eu voltasse à realidade. — É bom nos apressarmos, Léo. A mamãe já está nos esperando e o Sr. Clóvis está pronto para trazer a mudança.

— Vim dar uma última olhada na casa – respondi, tentando parecer contente.

— Dessa vez, as coisas vão melhorar – ela sorriu.

Coloquei a mão esquerda sobre o seu ombro e a conduzi até o lado de fora. A minha mãe já se encontrava na Kombi, com as mãos no volante e o olhar marejado, tentando conter o choro.

— Por que é que não pegou o espelho, Clarisse? – perguntei à ela, antes que entrasse na Kombi.

— Às vezes, é necessário nos desfazer dos pesos que nos prendem ao chão, para que possamos caminhar livremente e, quem sabe, voarmos rumo à um caminho de paz e tranquilidade – ela sorriu, simplesmente.

— Não entendi, mas vou considerar que você apenas não o quer – esbocei um sorriso. — Não tenho condições psicológicas para tentar entender as suas reflexões.

— Tudo bem, Léo – ela tornou a sorrir. — Totalmente compreensível.

Clarisse e eu havíamos nos distanciado nos últimos dias. Devido à tensão da mudança, o pouco de tempo que ela passava em casa, era trancafiada no quarto. Eu evitava conversar com ela, pois sabia que seria difícil recomeçar uma nova vida. Geralmente, ela era quem melhor aceitava as ideias da minha mãe, mesmo que aquilo lhe custasse abrir mão de todas as coisas, mas, daquela vez, ela estava diferente. Clarisse era uma criança diferente.

— Ultimamente, Clarisse, não tenho prestado atenção em muita coisa. – Tentei justificar-me. — Há algo que queira me contar?

Ela negou com a cabeça.

Antes de se virar para a Kombi, tornou a me encarar.

— Então, você não prestou atenção na minha apresentação de primavera?

— Sinceramente, não – respondi.

Ela voltou a sorrir, um pouco mais tranquila e radiante. Depois, acenou para o Sr. Clóvis. O homem, que tentava firmar uma escada na lateral da casa, acenou de volta para ela, tirando o chapéu da cabeça.

Admirei uma última vez a pequena casa amarela e entrei na Kombi, acomodando-me no banco do passageiro.

— Estão prontos para uma vida nova? – a minha mãe tentou nos animar, ligando o motor.

— Estou sempre preparada, pois tenho vocês ao meu lado – Clarisse abriu um sorriso, ajustando o cinto de segurança em volta do vestido florido.

A minha mãe sorriu para ela e, assim, partimos. 

As Doze Promessas de Clarisse (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora