Eu tinha certeza naquela época a que ela se referia: a ocasião em que o dr. Lee tinha jogado o giz para o alto. Quanto tempo quanto tempo tinha demorado o vôo do giz? Um segundo? Dois? Mas aqueles breves momentos haviam ficado congelados em sua memória. Eu precisaria de um quebrador de gelo para arrancá-los de lá. E não era tolo o bastante para tentar. Em vez disso, voltei ao irmão dela.
- Sua afirmação de que seu irmão parecia uma rocha me fez pensar numa outra rocha, a pedra da raiva que um dia você pôs na mesa entre nós. Sabia que, até hoje, você nunca havia mencionado seu irmão para mim? Mas a morte dele me ajuda a entender algumas coisas sobre nós dois. Talvez tenhamos sido sempre um trio: você, seu irmão, e eu, não é? Eu me pergunto se a morte dele terá sido a razão de você ter optado por ser sua própria rocha, a razão de nunca ter permitido que eu fosse a sua rocha. Será que a morte dele não a convenceu de que os outros homens se mostrariam frágeis e indignos de confiança?
Parei e esperei. Como Paula reagiria? Durante todos os anos em que eu a conhecia, aquela era a primeira vez que eu lhe fazia uma interpretação sobre ela mesma. Mas ela não disse nada. Continuei:
- Acho que estou certo, e acho que foi bom você ter ido a esse retiro, foi bom que tenha tentado dizer adeus a ele. Talvez agora as coisas possam ser diferentes entre nós dois.
Mais silêncio. Então, com um sorriso enigmático, ela se levantou e disse:
- Agora é hora de alimentá-lo - e saiu em direção à cozinha.
Seria aquela afirmação - "Agora é hora de alimentá-lo" - um reconhecimento de que eu acabara de alimentá-la? Diabo, omo era difícil dar-lhe alguma coisa!
Um instante depois, quando nos sentamos para almoçar, ela me olhou diretamente e disse:
- Irv, estou com um problema. Quer ser minha rocha agora?
- É claro - respondi, alegre por reconhecer em seu apelo uma resposta a minha pergunta. - Apoie-se em mim. Que tipo de problema?
Mas meu prazer por ser finalmente autorizado a ajudar transformou-se depressa em desilusão, à medida que ela começou a explicar seu problema.
- Abri tanto o verbo a respeito dos médicos que acho que entrei na lista negra deles. Já não consigo mais um bom atendimento. todos os médicos da Clínica Larchwood estão nessa. Mas não posso trocar de clínica, porque meu plano de saúde me obriga a receber tratamento lá. E, com as minhas condições de saúde, que outra seguradora poria as mãos em mim? Estou convencida de que eles me trataram de maneira antiética: o tratamento que me deram foi responsável por meu lúpus. Decididamente, houve negligência médica! E eles estão com medo de mim! Escrevem algumas observações da minha ficha médica em tinta vermelha, para poder identificá-las e retirá-las depressa do meu prontuário, caso haja alguma intimação. Estão me usando como cobaia. Suspenderam de propósito os esteróides, até ficar tarde demais. Depois, abusaram da dose. Sinceramente, acho que querem me ver pelas costas. Passei essa semana inteira escrevendo uma carta para denunciá-los ao conselho de medicina. Mas ainda não a enviei, principalmente porque comecei a me preocupar com o que pode acontecer com os médicos e suas famílias, se eles perderem suas licenças. Por outro lado, como posso deixar que continuem a prejudicar os pacientes? Não posso fazer concessões. Lembro-me de ter dito a você, um dia, que uma concessão nunca vem sozinha: ela da crais e, em pouco tempo, a gente perde aquilo em que mais acredita. E o silêncio aqui, neste momento, é uma concessão! Tenho rezado para pedir orientação.
Meu desânimo aumentou. Talvez houvesse uma parcela de verdade nas acusações de Paula. Talvez alguns de seus médicos, como acontecera com o dr. Lee muitos anos antes, ficassem tão irritado com seu jeito de ser que a rejeitassem. Mas escrever prontuários com tinta vermelha, usá-la como cobaia em experiências, restringir a medicação necessária? Eram acusações absurdas, e eu tinha certeza de que eram sinais de paranóia. Eu conhecia alguns desses médicos e acreditava em sua integridade. Mais uma vez, Paula me pusera na situação de ter que escolher entre suas convicções sólidas e as minhas. Mais do que tudo, eu não queria que ela achasse que eu estava abandonando. No entanto, como poderia ficar do seu lado?
Senti-me numa armadilha. Finalmente, depois de todos aqueles anos, Paula me fazia um apelo direto. Eu só via uma maneira de reagir: consederá-la uma paciente altamente perturbada e tratá -la - "tratá-la" no sentido obscuro e falso da palavra, no sentido de "manejá-la". Isso era o que eu sempre quisera evitar com Paula - com qualquer pessoa, aliás -, porque "manejar" alguém é relacionar-se com essa pessoa como um objeto e, portanto, é a antítese de estar com ela.
Assim, identifiquei-me simpaticamente com seu dilema. Escutei, fiz sondagens delicadas e guardei minhas opiniões para mim. Por fim, sugeri que ela escrevesse uma carta mais branda ao conselho de medicina:
- Franca, porém mais branda - disse-lhe. - Assim, os médicos receberão apenas uma reprimenda, em vez de perderem a licença.
Tudo isso, é claro, foi dito sem sinceridade. Nenhum conselho de medicina do mundo levaria a sério sua carta. Ninguém acreditaria que todos os médicos da clínica estavam conspirando contra ela. Não haveria a menor possibilidade de reprimenda ou cassação da licença.
Paula ficou absorta em seus pensamentos, ponderando sobre meu conselho. Creio que sentiu que eu me importava com ela, e torci para que não percebesse que eu estava sendo falso. Por fim, balançou a cabeça em sinal de assentimento.
- Você me deu um bom conselho, Irv, um conselho sensato. Era exatamente disso que eu estava precisando.
Foi doloroso sentir a ironia de ter sido unicamente nessa hora, quando agi sem sinceridade, que ela me considerou útil e digno de confiança.
Apesar da sensibilidade ao sol, Paula insistiu em me acompanhar até o carro. Pôs o chapéu de praia, enrolou-se em seus véus e lençóis e, quando liguei a ignição, debruçou-se na janela do carro para me dar um último abraço. Ao me afastar, olhei para trás pelo retrovisor. Com a silhueta contra o sol, com o chapéu e os panos que a envolviam brilhando na luz, Paula parecia incandescente. Soprou uma brisa. Suas roupas esvoaçaram. Ela me fez lembrar uma folha trêmula, oscilando em seu ramo, preparando -se para o outono.
Nos dez anos anteriores a essa visita, eu me dedicara a meus escritos. Havia produzido um livro após outro - uma produtividade nascida de uma estratégia simples: eu punha o ato de escrever em primeiro lugar e não deixava que nada nem ninguém interferisse. Vigiando meu tempo com a ferocidade com que uma mãe ursa protege os filhotes, havia eliminado todas as atividades que não fossem absolutamente essenciais. Até Paula havia entrado na categoria dos não-essenciais, e eu não perdera tempo ligando novamente para ela.
Meses depois, minha mãe faleceu, e quando eu estava no avião, a caminho de seu funeral, Paula surgiu em minha cabeça. Pensei em sua carta de despedida para o irmão morto - a carta com todas as coisas que ela nunca lhe dissera. E pensei no que eu nunca tinha dito a minha mãe. Era quase tudo! Mamãe e eu, embora nos amássemos, nunca nos faláramos diretamente, numa conversa franca, como duas pessoas que se buscassem com as mãos limpas e a mente aberta. Sempre havíamos "manejado" um ao outro, falado sem escutar, cada qual temendo, controlando e enganando o outro. Tenho certeza de que eu sempre quis falar de maneira sincera e direta com Paula. E foi por isso que eu detestei ser forçado a "manejá-la" com falsidade.
Na noite seguinte ao funeral, tive um sonho marcante.
Mamãe e muitos de seus amigos e parentes, todos mortos, estavam sentados numa escada, imóveis. Ouvi a voz de minha mãe chamando - gritando - meu nome. Notei especialmente tia Minny, sentada no degrau superior, muito quieta. Então, ela começou a se mexer, a princípio devagar, depois cada vez mais depressa, até vibrar mais rápido do que uma abelha. Nesse momento, todos os que estavam na escada, toda a gente grande da minha infância, todos mortos, começaram a vibrar. Meu tio Abe estendeu a mão para beliscar minha bochecha, cacarejando "filhote querido", como costumava fazer. Depois, os outros procuraram minhas bochechas. A princípio afetuosos, os beliscões foram ficando fortes e doídos. Acordei aterrorizado, com as bochechas latejando, às três horas da manhã.
O sonho retratavam duelo com a morte. Primeiro, fui chamado por minha mãe morta e vi todos os defuntos da família sentados na escada, numa quietude sepulcral. Depois, tentei negar a placidez da morte, infundindo neles o movimento da vida. Notei especialmente minha tia Minny, que morrera no ano anterior, depois de um derrame cataclísmico que a deixara completamente paralisada por vários meses, incapaz de mover um só músculo do corpo, a não ser os olhos. No sonho, Minny começou a se mexer, mas logo fugiu de controle e entrou numa movimentação frenética. Em seguida, tentei aliviar meu pavor dos mortos, imaginando-os beliscando afetuosamente minhas bochechas. Mas o pavor voltou a irromper, os beliscões tornaram-se ferozes e malignos, e fui totalmente dominado pela angústia da morte.
A imagem de minha tia vibrando como uma abelha me atormentou por vários dias. Eu não consegui afastá-la. Talvez, pensei comigo mesmo, fosse uma mensagem me dizendo que o ritmo frenético de minha própria vida não passava de uma tentativa desajeitada de aplacar a angústia da morte. O sonho estaria me dizendo para ir mais devagar e cuidar das coisas que eu realmente valorizava?
Essa idéia de valor me trouxe Paula de volta a lembrança. Por que eu não lhe havia telefonado? Ela era alguém que havia encarado a morte, olhando-a de cima. Recordei seu jeito de dirigir a meditação no fim de nossos encontros: os olhos fixos na chama da vela, a voz sonora conduzindo todos nós para regiões mais profundas e mais tranquilas. Algum dia eu lhe dissera quanto aqueles momentos significavam para mim? Havia muitas coisas que nunca lhe tinha dito. Pois agora iria dizê-las. No vôo de volta para casa, ao retornar do funeral de minha mãe, decide reatar minha amizade com ela.
Mas nunca a reatei. Havia muito o que fazer: mulher, filhos, pacientes, alunos, escritos. Eu escrevi minha página diária e ignorava todo o restante: amigos, correspondência, telefonemas, convites para dar conferências. Tudo, todas as outras partes da minha vida teriam que esperar até o livro estar terminado. E Paula também teria de esperar.
Paula, é claro, não esperou. Meses depois, recebi um bilhete de seu filho - o garoto que eu invejara por ter uma mãe como ela, o filho para quem, anos antes, ela havia escrito uma carta tão maravilhosa sobre a aproximação de sua morte. Ele escreveu, simplesmente: "Minha mãe morreu, e estou certo de de que ela gostaria que eu lhe desse a notícia".
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Mamãe e o sentido da vida
RandomDiretamente do consultório de Irvin D. Yalom surgem as histórias de Mamãe e o sentido da vida. A esperança e a determinação dos personagens dessas narrativas - reais e ficcionais - contagiam o leitor. Tropeçando em seus pensamentos e vagando pel...