Capítulo 2: Viagens com Paula

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Quando eu era estudante de medicina, ensinaram-me a refinada arte de olhar, ouvir e tocar. Olhei para gargantas vermelhas, tímpano protuberantes e os sinuosos regatos arteriais da retina. Ouvi o sibilar dos murmúrios mitrais, as tubas gorgolejantes dos intestinos, a cacofonia dos roncos respiratórios. Apalpei as bordas escorregadias de baços e fígados, a tensão dos cistos ovarianos, a dureza marmórea do câncer de próstata.

Aprender sobre os pacientes - sim, esse foi o tema principal da faculdade de medicina. No entanto, aprender com os pacientes foi um aspecto de minha criação superior que veio muito mais tarde. Talvez tenha começado com meu professor John Whitehorn, que dizia com frequência: "Escutem seus pacientes; deixem que eles os ensinem. Para adquirir sabedoria, vocês precisam continuar a ser alunos." E ele queria dizer muito mais do que a verdade banal de que um bom ouvinte aprende mais sobre o paciente. Ele queria dizer, muito literalmente, que devíamos deixar os pacientes nos ensinarem.

Homem formal, desajeitado e gentil, cuja careca brilhante era margeada por uma meia-lua meticulosamente cortada de cabelo grisalho, John Whitehorn foi o ilustre diretor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Johns Hopkins durante trinta anos. Usava óculos de armação dourada e não tinha nenhum supérfluo - nem sequer uma ruga no rosto ou no terno marrom que usava todos os dias do ano (supúnhamos que devia ter dois ou três idênticos no armário). Também não exibia expressões supérfluas: quando dava aulas, seus lábios se moviam; todo o restante - mãos, faces, sobrancelhas - permaneciam notavelmente imóveis.

Durante meu terceiro ano de residência em psiquiatria, cinco colegas de turma e eu passávamos todas as tardes de quinta-feira fazendo rondas com o dr. Whitehorn. Antes disso, almoçávamos em seu escritório revestido de painéis de carvalho. A comida era simples e invariável - sanduíches de atum, fatias de frios e bolinhos de caranguejo à moda de Chesapeake Bay, -, mas servida com elegância sulina: toalha de linho branco,bandejas de prata brilhantes, porcelana fina translúcida. A conversa do almoço era longa e sem pressa. Embora cada um de nós tivesse ligações para retornar e pacientes clamando por atenção, não havia como apressar o Dr. Whitehorn, e, por fim, até eu, o mais frenético do grupo, aprendi a colocar o tempo em segundo plano. Nessas duas horas, tínhamos a oportunidade de perguntar qualquer coisa a nosso professor: lembro-me de fazer perguntas sobre assuntos como a gênese da paranóia, a responsabilidade do médico para com o suicida, a incompatibilidade sobre a mudança terapêutica e o determinismo. Embora ele desse respostas completas, era claro que preferia outros assuntos: a precisão dos arqueiros persas, a comparação da qualidade entre o mármore grego e o espanhol, os principais erros da batalha de Gettysburg e sua tabela periódica aperfeiçoada (ele se formara originalmente em química).

Depois do almoço, o dr. Whitehorn começava a entrevistar os quatro ou cinco pacientes no consultório, enquanto observávamos em silêncio. Nunca se podia prever a duração de cada entrevista. Algumas duravam 15 minutos; muitas se prolongavam por duas ou três horas. Minha lembrança mais clara é dos meses de verão, do consultório fresco na penumbra, dos toldos de listras verdes e alaranjadas que bloqueavam o sol abrasador de Baltimore, dos suportes dos toldos circundados por trepadeiras de magnólia, cuja flores delicadas balançavam do lado de fora da janela. Da janela do canto, eu conseguia discernir a orla da quadra de tênis da equipe médica. Ah, como eu ansiava por jogar tênis naqueles dias! Ficava irrequieto e devaneava sobre aces de voleios, enquanto as sombras se estendiam inexoravelmente pela quadra. Só depois que o anoitecer engolia os derradeiros resquícios do tênis crespucular é que eu abandonava todas as esperanças e dava inteira atenção à entrevistas do dr. Whitehorn.

Seu ritmo era vagaroso. Ele dispunha de muito tempo. Nada lhe interessava tanto quanto a ocupação e os passatempos dos pacientes. Numa semana, ele podia incentivar o fazendeiro sul-americano a falar por uma hora sobre cafeeiros; na semana seguinte, podia ser um professor de história discutindo sobre o fracasso da armada espanhola. Seria de supor que seu objetivo primordial era de compreender a relação entre a altitude e a qualidade dos grãos de café, ou a motivação política quinhentista por trás da armada espanhola. Ele passava com tanta sutileza para áreas mais pessoais que eu sempre me surpreendia quando, de repente, um paciente desconfiado e paranóide começava a falar francamente de si mesmo e de seu mundo psicótico.

Mamãe e o sentido da vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora