— Podemos começar?
— Acho que não tenho outro compromisso para esse horário. — Sorriso.Nem para esse e nem para nenhum outro horário nos próximos dois mil anos,era o que ela pensava enquanto começou o interrogatório:— Por que vocês fizeram isso?
O último relatório do dia era geralmente o mais longo e trabalhoso de ser feito, por isso Sieben se adiantou ao máximo durante aquele dia, a fim de concluir os relatórios menores e ganhar tempo. Só assim conseguiria concluir o trabalho com êxito, sair mais cedo e chegar ao cemitério antes que fechasse.
— Faltam apenas algumas coordenadas. — Sieben disse para o chefe, que transitava no corredor próximo de seu cubículo.
— Deixe isso aí. Contanto que você não esqueça, pode preencher isso amanhã. — Dekao se recostou à entrada do cubículo. — Hoje faz um ano, não é?
Sieben assentiu com a cabeça. Nem conseguia acreditar que já se passara todo aquele tempo. De acordo com as Regras Gerais, a morte é sempre uma tragédia a ser lamentada, mas Sieben sabia, lá no fundo, que corria sérios riscos cada vez que pensava em seu falecido amigo.
— Obrigado.
E Sieben optou por se retirar, deixando Dekao sozinho após fazer uma meia reverência de agradecimento. Enquanto caminhava pelos corredores a passos largos, anotava no notepad as coordenadas que precisaria transcrever nos documentos na manhã seguinte. Era imprescindível, porque as Regras Gerais deixavam claro que as coordenadas dos locais onde as rebeliões aconteciam eram usadas para triangular as áreas e capturar os meliantes antes de um novo motim.
Logo ao chegar do lado de fora do prédio da Segurança, Sieben pegou a bicicleta e saiu. Não era comum sentir-se daquela forma, mas o aniversário de morte de Twine mexera consigo, muito mais do que Sieben gostaria de admitir. Tinha plena consciência de que o chip em sua cabeça poderia captar suas sinapses e acusá-lo de tratar a morte de forma diferente do que era especificado nas Regras Gerais. Sieben não tinha medo de morrer por uma descarga elétrica – a mesma que matava todos os que desenvolviam linhas de pensamento inadequadas –, mas, definitivamente, não queria morrer em cima da bicicleta, a caminho do cemitério, sem nenhum conhecido por perto que pudesse identificá-lo e enterrá-lo.
Não queria morrer como Twine.
Com um sorriso triste, Sieben balançou a cabeça em negação. Twine tinha aquele dom de acabar com suas certezas, e, aparentemente, seu talento permanecia – e permaneceria – vivo por muito tempo.
***
— Devo chorar?
Sieben estava ajoelhado de frente a lápide. Os olhos azuis pareciam cinzentos por causa das lágrimas que ele se recusava a derramar e ele esfregou o rosto com as mãos. Não era o seu usual agir de forma tão emotiva, com direito a voz embargada e cabelos – longos, como os homens de bem tinham – ao vento. Talvez nem fosse realmente culpa do aniversário de morte de Twine. Talvez Sieben estivesse simplesmente dando vazão a todos os problemas que sempre o atormentaram. Talvez aquela data fosse apenas um estopim, e Sieben já estivesse há muito condenado.
Talvez.
— O engraçado — Sieben tomou fôlego e sua voz soou mais clara — é que, desde que você se foi, nada mudou. Você poderia voltar neste exato momento, e tudo estaria do mesmo jeito que você deixou. Continuo trabalhando na Segurança, mesmo depois de todas as minhocas que você conseguiu colocar na minha cabeça. Sigo sem saber minha origem. Sem ter ideia do que houve com a nossa família. E sem ter coragem de descobrir. Você realmente não perdeu nada.
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Sui Generis
Science FictionUnidade é o nome do último país habitado do mundo e onde mora Sieben, um jovem de vinte anos que passou a vida inteira integrando a sociedade em que vivia sem questionar as diversas incoerências que aprendera a respeito de sua origem e seu país. E...