— É uma pergunta direta. Existem muitos motivos. — Pausa.
— Comece pelo mais importante.
— Parecia ser a única forma de fazer com que todos funcionassem... Bem, como uma unidade. Daí o nome.
— Certo. Daí o nome.
Cada vez que se deparava com o próprio reflexo cansado no espelho do banheiro, Sieben tinha vontade de voltar no tempo e nunca ter ficado até tão tarde naquela maldita clareira. Ou poderia também se jogar do prédio onde morava, mas suicídios – ou a tentativa deles – não eram bem-vistos de acordo com os artigos das Regras Gerais. Tentativas, frustradas ou não, de acabar com a própria vida geravam custos para o Fundo Monetário Público, então eles investigavam em busca de qualquer familiar, mesmo o mais distante, para custear o enterro ou tratamento do suicida caso este sobreviva, sob pena de reclusão caso a pessoa se recusasse a financiar. Achou por bem apenas aceitar a própria tolice em ter perdido quase a noite inteira de sono apenas para observar os meliantes que provavelmente estariam mortos antes do final daquela tarde.
E aquele pensamento incomodava Sieben mais do que qualquer coisa.
De fato, enquanto escovava os dentes, ligeiramente orgulhoso por não estar atrasado ao mesmo tempo em que se sentia um completo idiota por ter dormido por menos de duas horas, Sieben trabalhava em tentar não admitir para si mesmo que estava mais preocupado com a situação das pessoas da clareira do que irritado pela forma que conhecera seu novo parceiro de trabalho. Não conseguia aceitar a frieza com a qual Ershi o convocou para um trabalho fora do expediente enquanto Sieben sentia profundamente a ausência de Twine. E pensar que, em uma situação como aquela Ershi era quem tinha razão deixava Sieben ligeiramente perturbado.
Ershi era o funcionário exemplar, e o estereotipo de pessoa concisa e conformada que as Regras Gerais tanto prezavam. Ao menos era o que dizia seu comportamento contrastante com sua aparência rebelde com o cabelo tingido. Sabia que estava prejulgando Ershi e sabia que levaria tempo até se acostumar com o substituto de Twine, mas estava com raiva e Ershi parecia-lhe o melhor bode expiatório naquele momento, então a culpa era toda dele.
Depois de tomar um copo cheio de café forte, Sieben saiu de casa ligeiramente zonzo. O caminho até o trabalho nunca lhe parecera tão longo. Quase caiu da bicicleta em duas ocasiões: quando o sinal do semáforo abriu e um carro passou rente a sua roda dianteira, e quando uma criança tentou atravessar a rua antes da mãe se jogando na ciclovia repentinamente. Em dias melhores, Sieben não teria problemas com situações tão recorrentes, mas aquele dia não poderia começar pior – uma vez que ele não estava com a mínima vontade de levantar da cama – e por isso precisou de agilidade – e um pouco de sorte – para evitar um mal maior.
Ao chegar à recepção da Segurança, Sieben viu Iska, a secretária, de muito longe, logo ao chegar ao bicicletário. Ela lhe sorriu de imediato. Acabava de retornar de férias e parecia muito melhor do que jamais esteve durante aquele ano atuando como recepcionista. Sieben se lembrava de uma vez, pouco antes de Twine morrer, em que almoçavam no refeitório e Twine se deu o desplante de interrogar a novata:
— Como conseguiu trabalhar aqui?
Iska era uma mulher de meia idade, baixa e de peso ligeiramente acima do que as Regras Gerais sobre a saúde recomendavam. No passado, de acordo com o que Sieben estudara durante a graduação, Iska poderia interpretar a atitude de Twine como uma afronta pelo fato de ser negra, mas com a regulamentação do pensamento dado pelas Regras Gerais, a única interpretação cabível era porque Iska era mulher.
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Sui Generis
Science FictionUnidade é o nome do último país habitado do mundo e onde mora Sieben, um jovem de vinte anos que passou a vida inteira integrando a sociedade em que vivia sem questionar as diversas incoerências que aprendera a respeito de sua origem e seu país. E...