Corvos! Sempre os corvos. Eles se acomodaram nas empenas da igreja antes mesmo que os feridos se transformassem em mortos. Antes mesmo que Rike terminasse de arrancar dedos das mãos e anéis dos dedos. Eu me recostei na trave da forca e
acenei para as aves, uma dúzia delas, alinhadas numa fila negra, sagaz e vigilante.
A praça do vilarejo tornara-se vermelha. Sangue nas sarjetas, sangue nas lajes, sangue no chafariz. Os cadáveres nas posições típicas dos cadáveres. Alguns, cômicos, apontando para os céus com dedos amputados. Outros, em paz, retorcidos sobre suas chagas. Moscas se amontoavam sobre os feridos enquanto estes se debatiam. De um lado e de outro, alguns cegos, alguns astutos, todos traídos pelos zumbidos daquela comitiva. Água! Água!” É sempre água o que os moribundos querem. Estranho. O que me dá sede é matar.
E assim foi em Mabberton. Duzentos fazendeiros mortos, jogados ao chão com suas foices e machados. Vocês sabem, eu avisei que era isso o que fazíamos para viver. Eu disse a seu líder, Bovid Tor. Eu lhes dei uma chance, sempre dou. Mas não. Eles queriam sangue e carnificina. E conseguiram.
Guerra, meus amigos, é uma coisa bela. Ainda que não me importasse em ir até o velho Bovid encostado à fonte d’agua, com as vísceras sobre o próprio colo, ele provavelmente teria uma opinião contrária. Mas vejam só o que ele conseguiu discordando de mim.
“Lavradores de merda.” Rike descartou um punhado de dedos sobre a barriga aberta de Bovid. Ele se aproximou, segurando seu achado como se a culpa fosse minha. “Veja só! Um anel de ouro. Um! Uma vila inteira e uma porra de um anel de ouro. Queria pôr esses filhos da puta em pé só para derrubá-los de novo. Lavradores de merda.”
Ele bem seria capaz: um bastardo, cruel e ganancioso como aquele. Olhei fixo em sua direção. “Calma, irmão Rike. Há mais de um tipo de ouro em Mabberton.”
Meu olhar era um aviso. Aqueles insultos haviam roubado toda a magia do entorno; além do mais, eu precisava ser severo com ele. Rike sempre chegava ao limite após uma batalha, querendo mais. Meu olhar lhe dizia que sim, eu tinha mais. Muito mais do que ele seria capaz de lidar. Rike resmungou, guardou seu maldito anel e, numa estocada, pôs sua faca de volta no cinturão.
Então Makin se aproximou e passou um braço em volta de cada um de nós, fazendo ressonar o metal das suas luvas nas ombreiras de nossas armaduras. Se Makin possuía algum talento era o de conseguir apaziguar os ânimos.
“O irmão Johnn está certo, Pequeno Rikey. Há tesouros em abundância esperando por nós.” Ele estava acostumado a chamar Rike de ‘Pequeno Rikey’ por ser uma cabeça mais alto que qualquer um de nós e duas vezes mais largo. Makin sempre contava piadas. Contaria piadas para aqueles que matava, se houvesse tempo. Gostava de vê los partir com um sorriso no rosto.
“Que tesouros?” Rike quis saber, ainda rabugento.
“Onde há fazendeiros, o que mais você encontra, Pequeno Rikey?” Makin arqueou as sobrancelhas de modo insinuante.
Rike levantou a viseira do elmo, obrigando-nos a olhar para sua cara feia. Talvez mais brutal do que feia. Acho que as cicatrizes lhe caíam bem. “Vacas?”
Makin franziu os lábios. Jamais gostei dos seus lábios, muito grossos e carnudos. Mas eu perdoava, graças às suas piadas e sua habilidade mortal com a clava. “Bem, você pode ter suas vacas, Pequeno Rikey. Quanto a mim, prefiro achar uma filha de fazendeiro, ou três, antes que os demais se aproveitem de todas.”
Eles se afastaram, Rike rindo daquele seu jeito, “hur, hur, hur”, como se tentasse tossir uma espinha de peixe entalada na garganta.
Eu os vi forçando a porta de Bovid, uma casa refinada em frente à igreja, com telhado em ripas de madeira e um pequeno jardim florido. Bovid os acompanhou com os olhos
mas não conseguia virar a cabeça.Eu olhei os corvos, e olhei Gemt e seu tolo irmão, Maical, recolhendo cabeças. Maical com o carrinho e Gemt com o machado. Uma coisa bela, eu lhes digo. Pelo menos para se admirar. Concordo que a guerra cheira mal. Mas nós atearíamos fogo no local em breve e o fedor se transformaria em madeira queimada. Anéis de ouro? Eu não precisava de pagamentos extras.
“Rapaz!” Bovid me chamou. Sua voz estava oca e enfraquecida. Fui me prostrar a sua frente, inclinado sobre minha espada, sentindo um cansaço repentino em meus braços e pernas. “Diga logo o que você quer, fazendeiro. O irmão Gemt já vem com seu machado. Rápido!”
Ele não me pareceu muito preocupado. É difícil abalar um homem que está prestes a se tornar um banquete de vermes. De qualquer maneira, fiquei irritado com o jeito suave com que ele me segurou, me chamando de “rapaz”. “Você tem filhas, fazendeiro? Escondidas no porão, quem sabe? O velho Rike vai farejá-las, com certeza.”
Bovid me encarou, dolorosa e intensamente. “Quan... quantos anos você tem, rapaz?”
“Rapaz” de novo. “Tenho idade suficiente para abrir você como se fosse um saco de banha”, eu disse, cada vez mais furioso. Não gosto disso. Estar furioso me deixa ainda mais furioso. Mas creio que ele nem percebeu. Ele nem deve saber que fui eu quem abriu suas entranhas, menos de meia hora atrás.
“Quinze primaveras, não mais. Não poderiam ser mais...” Suas palavras saíram devagar, de lábios azuis num rosto pálido.
Errou por um par de anos, eu lhe diria, mas ele já não escutava
a mim e Gemt chegou com seu machado, pingando.“Leve esta cabeça”, eu lhe disse. “Deixe esta barriga gorda para os corvos.”
Quinze anos! Se tivesse quinze anos não estaria devastando vilarejos.
Quando chegasse aos quinze, já seria rei!
Algumas pessoas nasceram para nos incomodar.O irmão Gemt nasceu para incomodar o mundo