1. Objetos sem alma

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Sua Tia Flora havia dito que o outono era a melhor época para descobrir a França. De fato, quando o verão vai gradualmente terminando, tudo naquele lugar se enche de charme e romantismo. A música evoca antigas paixões com mais intensidade, a culinária, repleta de trufas e vinhos de personalidade própria, encanta os amantes e provoca uma infinidade de desejos e, para completar o quadro o pôr do sol banha de dourado as cidades, dando às memórias desses dias um belo tom de sépia.

Bárbara não tinha cabeça para nada disso.

Aquela viagem era um prêmio de consolação.

Passeava pelo Palais du Louvre sem rumo. O pensamento voava longe. Enquanto isso, a professora tagarelava sobre Monet, Renoir e Degas. Ou algo nesse sentido. Babi desistira de compreendê-la. Seu francês de cursinho não a levava para nada além de "merci", "bonsoir" e "Quels sont le jours de la semaine?". E jamais encontrara de fato oportunidade para usar a terceira frase.

Se precisava de algo, usava o inglês. No seu fone de ouvido, tocava Single Ladies. E, desde que chegara dias antes, frequentara bem mais o velho McDonald's do que as famosas boulangeries de Paris. Portanto, a despeito de estar caminhando pela cidade luz e em praticamente todo lugar se ouvir Piaf cantando La Vie En Rose, o coração da moça carregava apenas escuridão, fazendo com que o momento perdesse suas cores.

O ano de 2008 não estava sendo fácil. Os sintomas. A descoberta. O diagnóstico fulminante. A morte. Perdera a mãe. Perdera o rumo. Perdera o chão. Quase perde completamente a vontade de viver, mas a medicação chegou na hora certa. Escapou de fazer uma besteira. Seu pai não precisava mesmo ter de passar por isso. Ele não merecia mais esse sofrimento. Era um cara bacana.

Porém, nesse processo de sobreviver, uma parte de Bárbara não resistiu e morreu. Foi enterrada junto com a mãe.

Aquela viagem era produto da fé. Seus familiares queriam acreditar em ressureição. Como se ela pudesse simplesmente esbarrar em si mesma atravessando uma das pontes que cruzavam o Sena. Ledo engano. Ela sabia disso. Nada seria capaz de resgatar a pessoa que ela fora uma vida inteira e que se perdera em poucos meses. Mas o pai insistira na ideia de que um mês estudando arte na Europa fosse conseguir trazer de volta a sua menininha encantadora.

Bárbara não tivera forças para dizer que não.

Pelo menos, passaria um mês sozinha.

Um mês cultivando sua própria dor.

Tinha plena consciência de que a adolescente que queria ser arquiteta e que sonhava com a restauração de monumentos antigos desde que visitara pela primeira vez um museu não existia mais. Ela caminhava por aquelas ruas cheias de História e via apenas prédios velhos. Não conseguia compreender como a humanidade se conectava facilmente a um passado que não fazia mais sentido, ao mesmo tempo em que ela já quase não se lembrava mais da maneira engraçada como a mãe segurava a faca quando o passava margarina no pão.

Bárbara estava se esquecendo dos detalhes sobre a pessoa mais importante da sua vida enquanto analisava um quadro de mais de quinhentos anos nas suas mínimas peculiaridades. Ela estivera diante da Mona Lisa. E até a genialidade de Da Vinci lhe pareceu medíocre perto do significado de efêmero.

Certamente que a técnica e o momento histórico estavam lá, naquele pequeno pedaço de tela, porém, a essência da mulher retratada se perdera. Para sempre. E, na verdade, o que era mais importante? O talento do artista estava eternizado, mas a alma de Gioconda fora completamente esquecida. Sobraram apenas especulações.

Especulações como as que as pessoas faziam sobre o seu futuro. Elas pareciam confiantes. Já ela mesma não era capaz de especular nada. Vivia um dia de cada vez. Simplesmente resistindo. Lutando para não se abater pela dor. Pagando como preço a sua capacidade de sentir qualquer outra coisa.

A professora declarara que o restante da tarde seria livre para visitar o museu. Marcou o horário do retorno.

A moça caminhou por entre aquelas obras e as viu como eram de fato. Apenas objetos. Sem alma. Aborreceu-se em absoluto e tomou a caminho da rua. Lá fora, pelo menos, havia pessoas com almas de verdade. Para ela, essas eram as histórias que realmente importavam.

Sem perceber, chegou a um lugar que conhecera por fotos. Uma ponte atravessando o rio Sena repleta de cadeados. Os casais gravavam suas iniciais e depois os prendiam nas grades da ponte como símbolo de amor eterno. Pont des Arts.

Aquilo sim a fascinou. 

A Bela Da TardeOnde histórias criam vida. Descubra agora