Prólogo

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O mundo está cheio de coisas complicadas.

Muitos dizem que os assuntos mais delicados, e que não podem ser levados em discussão, se resumem em: Política, Esporte e Religião. Talvez por se tratar de opiniões muito pessoais, ou por às vezes serem meras defesas forçadas de um descontentamento.
Mas se analisarmos bem, essas discussões não são tão perigosas assim. Não tanto quanto o amor, pelo menos.

O amor é tão complexo e perigoso que nem sabemos definir direito. Para Erich Fromm, o amor é uma faculdade que deve ser estudada e desenvolvida. "Se quisermos aprender como se ama, devemos proceder do mesmo modo que agiríamos se quiséssemos aprender qualquer outra arte, seja a música, a pintura, a carpintaria, ou a arte da medicina ou da engenharia".
Anthony Giddens, relata que os estudos sobre a sexualidade feitos pelo homem, em nenhum momento citam o amor. Para Carl Sagan, o amor não passa de uma invenção dos mamíferos para justificar suas ações e interesses.
"O amor não se define, o amor se vive" dizia Lincoln Oms.

Mas se fosse, seria ele definido por um coração? Um beijo? Ou quem sabe um fruto proibido?
Cabe nele discussões éticas, quanto ao que se deve ser amado? Morais, quanto às motivações de uma união? Políticas, quanto a questões homoafetivas, inter-raciais, sociais e afins?
"O amor romântico existia entre os gregos, mas raramente determinava os casamentos", disse Will Durant. Somente após a revolução francesa é que foi considerada comum a união de pessoas por puro afeto, além de interesses familiares, políticos ou de procriação.
Mas o que raios seria este tal amor? O "fogo que arde sem se ver" ou a "ferida que dói e não se sente", como disse Camões?
Ou o sentimento que Gabriel Garcia citava quando escreveu: "Te amo, não por quem tu és, mas por quem sou quando estou contigo"?
Vamos falar de amor. No entanto, não vamos começar direto com aquele belo e quente amor carnal entre dois corpos. Vamos pela manifestação primária de amor do ser humano. A família.


O primeiro membro registrado da minha família foi meu avô. Não achei muitos registros do nome verdadeiro dele, mas por algum motivo o chamavam de Urano.
Ele era, sem dúvidas, o sujeito mais estranho que já vi. Sua expressão era fria e nula, como se fosse o eterno vazio do espaço em pessoa. Dizem que puxou isso do pai, que era um completo caos.
Pois bem. Meu avô Urano acabou conhecendo minha avó, Gabriela, mas que todos chamavam de Gaia. Eles viviam juntos como se fossem céu e terra. Com o passar dos anos, acabaram tendo sete filhos juntos, enquanto em algum lugar da Bahia eu nascia e era jogado em um orfanato. Deu pra perceber que não são meus avós de sangue, mas família é aquela quem cuida.
E lá estava eu. O pequeno e indefeso Eros. Uma criança levada que corria aprontando com seus cachos loiros balançando, e o bumbum de fora arejado pelo vento. Junto a mim, havia o Delfos. Um espírita metido a sabichão. Dizia ele que previa o futuro, dando profecias aos mais desesperados. O que uma criança poderia saber do futuro?
Falando em profecias, meu avô Urano ouviu de um oráculo, amigo da família, que seria traído e morto por seu filho mais novo. Olha que coisa saudável para se dizer a um pai de família.
Isso fez meu avô querer dar fim a cada criança que minha avó paria.
Vó Gaia teve de começar a esconder seus filhos, a medida que vinham. Até que veio o sétimo deles: Cronos.
Olha, eu era um moleque levado, mas Cronos era o catiço em pessoa. Logo na adolescência, passou a entender as loucuras que o pai tinha. Ele sempre teve uma organização de tempo louvável, conseguindo administrar estudos e um trabalho de meio período numa relojoaria no morro.

Cronos cresceu, ficou forte, e quando sua família já não mais aguentava as loucuras do pai, ele vendeu as joias do piercing que sua mãe trazia no peito. Com o dinheiro, comprou uma faca afiada, e (crianças, pulem esta parte) castrou o próprio pai.
Naquele dia, todo o morro esteve em festa pela queda do tirano. E da praia, veio minha mãe. A que era tão bela que, quando bebê, participou de todos os comerciais infantis de fraldas, berços, e coisas que nem tinham marketing, mas acabavam criando propagandas só pra estampar sua cara. Quando adolescente, ela acabou recebendo um prêmio honorário que a proibia de participar dos concursos de miss.

Era modelo de fotos, pinturas, inspiração para músicas e destruição de coração de marmanjos e garotas que se descobriam de uma nova forma. Mesmo mais velha, ainda seguia a escolha da vida de solteira. Por sua beleza descomunal, desde o colégio a apelidaram de Afrodite. Ela não era, obviamente, minha mãe biológica. Mas me acolheu e criou melhor do que qualquer uma faria.

O tio Cronos também teve filhos. Duas meninas e três meninos. E depois ainda adotou mais uma menina, chamada Hera, que mais tarde viria a namorar e casar com seu filho mais novo.
São engraçadas algumas coisas que herdamos de nossos antepassados. No caso do tio Cronos, foi a loucura do pai. Sendo também o caçula, ele resolveu perguntar ao Delfos sobre seu futuro. E aquele desgraçadinho mandou na lata:
— Seu filho mais novo vai acabar com você.
Mas Cronos já tinha visto esse filme. Assim que nasciam seus filhos, ele tirava logo as crianças de perto da mãe e dava para serem criadas longe. Só que meu tio não era lá a pessoa mais esperta do Rio de Janeiro.
Quando nasceu Zeus, minha tinha Reia deu um bebê de brinquedo pro cara, e escondeu o verdadeiro na casa de sua mãe, onde Zeus não pisava. Ele acreditou que era o real e simplesmente mandou pra longe sem nem parar pra olhar. Pense no nível de cachaça do cidadão que não mais diferenciava criança de boneca.
Zeus cresceu escondido. Como Cronos não conhecia seu rosto, ele foi se infiltrando na rede ilegal comandada pelo pai na favela. Começando como um aviãozinho anônimo, ele foi galgando os postos até finalmente chegar ao topo e destroná-lo de vez.
Ele tomou a favela pra si, que hoje se chama Morro Olimpo por conta de uma sátira engraçadinha do jornal. Zeus cuida da parte geral de cima, em um barraco enorme com vista pra geral. Tio Poseidon, fiscaliza o movimento na praia. Há quem diz que ele até mora lá, pois nunca o viram fora da areia ou da água. E o tio Hades cuida do submundo, aonde vai a galera que vacila e acaba rodando.
Enquanto isso, eu continuava seguindo minhas travessuras no morro. Alguns médicos diziam que eu sofria do mal de Peter Pan. Tinha uma alma de criança eterna. E meu passatempo favorito, era causar o maior número possível de intrigas na favela com meus bilhetinhos amorosos secretos. Uma espécie de correio elegante das festas juninas.

Com o número absurdo de reclamações vindo de seu querido filho adotado, minha mãe acabou engolindo seu orgulho e pediu um conselho pra a tia Deméter.
— Minha irmã pense um pouco. Esse menino é assim por que você mima demais ele. Ele sobe e desse o morro quase pelado com aquele arco e flecha maluco e os bilhetinhos maldosos. Olha, eu já te disse, ele vai acabar machucando alguém.
— Mas Deméter, o que eu faço pra que ele cresça!?
— Dê a ele um irmão. Alguém pra dividir esse amor de solteirona que você tem.
Sabe pobre que nunca sabe medir, e em momentos de aperto acaba exagerando? Pois é. Poucos anos depois eu tinha três novos irmãos adotados.

Pohtos era o apaixonado. Cada dia dizia estar derretido por uma pessoa diferente da escola, trabalho, da comunidade ou da televisão. Era o homem das paixões passageiras. Já Himeros, era da esbornia, da bagaceira. Tinha mais amantes do que pares de meia.
E o caçula, Anteros, era o defensor mundial dos amores não correspondidos. Não podia ver uma friendzone ou um fora mal dado, que chegava para se meter na história.
No colégio, nos éramos chamados de Erotes. Zoados por todos. Mas mal sabiam eles o quanto precisariam de nossa ajuda.

As crônicas de um cupido bêbadoWhere stories live. Discover now