Vinícius saiu para o trabalho, desejando do fundo de sua alma que aquele fosse um dia como outro qualquer, mesmo sabendo que não era. Nunca fora de compartilhar o ódio comum pelas segundas-feiras, pelo contrário, em nada lhe agradava o ócio dominical. Mas aquela segunda-feira era diferente.
Era segunda-feira de Carnaval.
A imundície vista pela janela do trem trazia à sua mente as lembranças da torturante algazarra do dia anterior, da qual, como morador de um dos bairros mais boêmios do subúrbio carioca, nem mesmo o isolamento de seus fones de ouvido pôde lhe salvar. Vinícius não se constrangia de dizer a ninguém o quanto detestava o Carnaval, embora não fosse exatamente verdade.
Na verdade, ele o odiava.
Ao menos o trem para o centro da cidade estava mais vazio do que o de costume. Claro, boa parte de seus frequentadores habituais estava de folga, possivelmente acordando de uma bela ressaca naquele momento. Vinícius conseguia até mesmo se manter de pé sem ser espremido entre os colegas de viagem, muitos dos quais pareciam desconhecer o instituto do banho matinal (ou de um simples desodorante).
O medo de assaltos fazia com que evitasse usar seus fones de ouvido em espaços públicos, o que o deixava a mercê dos gritos dos ambulantes e do falatório generalizado no interior do vagão. A cacofonia lhe era atordoante. A limitada obviedade das conversas, mais enfadonha do que a repetição de paisagens, estação após estação.
Uma delas tinha seu panorama tomado pelo muro branco de um cemitério, do outro lado da avenida que ladeava a ferrovia. Uma pequena multidão, vestida de preto, apinhava-se por entre os carros estacionados ao longo da calçada. Estava acontecendo um funeral. Como o cemitério se situava em um plano levemente mais baixo, Vinícius conseguia ver a procissão negra cruzando os portões de ferro para seguir em cortejo por entre os túmulos.
No fim das contas, havia dor e perda no Carnaval. Enquanto a cidade se entregava completamente ao frenesi inconsequente, o luto pairaria sobre aquelas pessoas. Para elas, não haveria mais festa. Ou quem sabe, estivesse enganado. Talvez muitos ali não guardassem qualquer carinho genuíno pela memória do defunto, apenas contando os arrastados minutos de solidariedade obrigatória antes de correr para casa e se aprontar para o próximo bloco. Talvez o próprio Carnaval fosse o responsável por acabar com aquela vida.
Às vezes, Vinícius achava que poderia morrer de Carnaval.
Foi trazido de volta de suas divagações pela tosse catarrenta de um bebum, estirado em um dos bancos de espera da estação. Com um chapéu de malandro a proteger-lhe os olhos da manhã ensolarada e de braços cruzados sobre a camiseta de cervejaria encardida, o homem dormia profundamente. Na certa, pernoitara ali. Estaria algum ente querido àquela hora desesperado por sua ausência? Ou não havia ninguém que se importasse? Vinícius não sabia dizer qual hipótese era mais deprimente, mas a ideia de vagar madrugada adentro pela boemia carnavalesca lhe causou tamanho arrepio de angústia que decidiu pensar em outras coisas.
Em Érica, por exemplo.
Chegando ao trabalho, Vinícius cumprimentou a todos com quem cruzou, distribuindo-lhes sua uma dose diária de "bons dias". Ainda que a impressão geral a seu respeito fosse a de um indivíduo acanhado e taciturno, não lhe agradava receber a pecha de antipático. Procurava cultivar um bom relacionamento no local de trabalho, e até onde podia ver, era bem-sucedido. Ninguém ali poderia ter nada de ruim a dizer a seu respeito. Talvez ninguém tivesse, também, nada de bom. Mas Vinícius não se enganava. Sabia que significava tanto para aquelas pessoas quanto elas para ele.
Só esperava que o mesmo fosse verdade em relação a Érica.
Deus, como ela era linda. Pele de um branco levemente amorenado, longos cabelos negros, olhos grandes e castanhos coroando como joias o rosto que lhe era perfeito, não apesar do nariz aquilino, mas também por causa dele. Érica conversava animadamente com uma outra colega de trabalho, algumas mesas de distância de Vinícius, e nessa hora havia uma luz que julgava ser o único capaz de ver, brotando do sorriso marcado pelo gracioso par de covinhas.
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Festa da Carne
Short StoryUm homem que odeia Carnaval está prestes a descobrir que, na mais profana das noites, o Carnaval também pode odiá-lo de volta.