Parte 2

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A tarde sangrou suas horas entre doses de café e o ruído esporádico da única impressora ainda ligada no escritório. Vinícius evitava olhar para o relógio. Sua ansiedade tinha duas faces: sorria-lhe um otimismo quase eufórico, mas, ao mesmo tempo, o Carnaval era uma máscara ameaçadora, pairando sobre cada pensamento seu, atrapalhando seu raciocínio.

Deixou o escritório quando o edifício fechou, pontualmente, às quatro da tarde. Encontrou uma cidade abafada e insolitamente deserta para àquela hora de uma segunda-feira. A calçada pegajosa estava coberta de copos de plástico, garrafas de cerveja pela metade, colares havaianos e outros pedaços de fantasias. O futum adocicado de cerveja e mijo invadia-lhe as narinas, causando-lhe um asco inominável.

A caminhada durou cerca de vinte minutos. A cada passo, o batuque dos tambores ganhava intensidade, misturando-se ao ganido das cuícas e ao sopro dos apitos, ressoando como o canto de sereias monstruosas atraindo os incautos para os arrecifes.

Vinícius cogitou, mais de uma vez, dar meia-volta e ir para casa, mas a lembrança do sorriso de Érica o manteve no caminho. Repassou mentalmente cada movimento que faria ao encontrá-la, cada tópico de conversa a abordar. Pretendia beber uma ou duas cervejas, coisa que detestava, apenas para criar coragem e ter algo no que pôr a culpa depois, caso sua investida desse errado.

Chegando ao camelódromo municipal, deparou-se com uma multidão bem maior do que a que estava esperando. A massa humana se aglomerava em torno do estreito coreto erguido sobre o calçadão, ocupando também as duas ruas que o margeavam. O verde-limão, o rosa-choque, e o vermelho-sangue das fantasias dividiam igual espaço com o azul-celeste, o amarelo-palha e a risca de giz dos trajes sociais. Havia também o branco inflamado da pele dos turistas, facilmente identificáveis pelo sorriso de estupefação que Vinícius julgava tão idiota.

Encontrar Érica no meio daquela multidão não seria nada fácil. O cheiro adocicado e nauseante da cerveja erguia-se dos copos e dos corpos como uma nuvem inescapável de torpor. Vinícius ia de um lado para o outro, mas parecia enxergar apenas uma mesma dúzia de rostos, repetindo-se de novo e de novo. Pessoas gritavam dentro dos ouvidos umas das outras, e as outras acenavam de volta, fingindo terem entendido, fingindo que eram capazes de escutar qualquer coisa além do estrondo chiado e insuportável do samba.

A gentinha apressada esbarrava em seu corpo mirrado sem olhar para trás ou pedir desculpas, enfurecendo-o menos pela falta de educação do que pela clara impressão de que topavam nele e somente nele, como se quisessem expulsá-lo dali. Vinícius sabia que era uma coisa da sua cabeça.

Afinal, o Carnaval não era uma entidade capaz de odiá-lo tanto quanto ele a odiava. Certo?

A noite caiu sem que encontrasse Érica. Embora tivesse enviado mais de uma mensagem no celular, ela não as visualizava. Pensou mais uma vez em ir para casa. Queria muito ir para casa. O que não daria para estar longe dali, no aconchego de sua sala, seus filmes e sua internet de altíssima velocidade. O que não daria para que Érica lhe tivesse convidado para um cinema e não para o inferno.

Vinícius afastou-se do ponto de maior concentração do bloco a fim de ter uma visão mais abrangente da área. Não viu sinal de Érica, mas acabou dando de cara com Jotapê e outros rostos familiares e igualmente desimportantes do trabalho.

– Fala aí cara, tudo bem? – cumprimentou-o entusiasmadamente o colega.

– Tudo bem, João Paulo?

Vinícius nunca o chamava por seu apelido. O conhecera como João Paulo em seu primeiro dia de escritório e jamais se permitiu denotar qualquer maior intimidade. Vinícius, por sua vez, sempre fora Vinícius, exceto para uns poucos membros da família, sua mãe inclusa, que o chamavam de "Vini". Adoraria que Érica o chamasse assim também.

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