Parte 3

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Esfregando os braços para se livrar do que, ao seu sentir, eram os restos da teia maldita ainda se agarrando ao seu corpo, Vinícius percorreu os arredores com seu olhar. Estivera preso naquele trem infernal pelo que pareceram dias; precisava saber o quão longe ainda estava de casa.

Sua resposta veio na forma de um familiar muro branco, tomando de ponta a ponta o quarteirão vizinho à estação de trem.

Não havia problema. Aguardaria pacientemente por uma composição minimamente salubre, nem que precisasse amanhecer o dia ali. Um assento limpo e seus fones de ouvido eram tudo de que Vinícius precisava.

Atirou para o lado um chapéu de malandro esquecido sobre o banco, sentou-se e se pôs a navegar pelo repertório de músicas no smartphone. Demorou a escolher, em parte por saborear o glorioso silêncio da estação deserta, finalmente optando por uma seleção de clássicos do rock dos anos 70. Sua realidade foi então tomada pelo som perfeitamente remasterizado das velhas guitarras elétricas, e Vinícius apenas fechou os olhos e respirou.

Por um breve e precioso instante, o Carnaval desapareceu.

Mas então houve certa batida diferente, soando descompassada ao fundo de um riff clássico. De início Vinícius não deu atenção ao fato, até que se tornou evidente demais para ser ignorado. Um baque seco e repetitivo que, Vinícius logo percebeu, não se originava da gravação que escutava. Olhou para o lado e se deu conta de que não estava sozinho.

O Clóvis azul e amarelo estava na plataforma com ele.

Como não o percebera ali antes? Vinícius mal teve tempo de pensar, quando o Clóvis bateu com sua bola no chão, mais uma vez. Um odor pútrido espalhava-se pelo ar conforme a bizarra figura se aproximava, batendo a bola enquanto gingava o corpo em uma coreografia sem música.

Seria um assalto? Puta que o pariu, era só o que lhe faltava.

Vinícius pensou rápido. A saída secundária da estação, uma pequena escada encerrada por uma catraca, estava bem ao seu lado. Teria que pagar outra passagem para retornar a estação depois, mas não tinha escolha. Ali, estava à mercê do misterioso bate-bola.

Saiu para a rua, mas o Clóvis estava lá também.

De alguma maneira inexplicável, a bizarra figura se encontrava a poucos passos de si, saltitando convulsivamente. Tum-tum-tum – batia sua bola no asfalto.

Tomado por um pânico que lhe era desconhecido, já que nem mesmo na infância tivera medo de bate-bolas, Vinícius lançou seu olhar para o outro lado da avenida e divisou um bloco a passar animadamente, bem diante do muro do cemitério. Jamais poderia conceber que tal cena o deixaria tão feliz.

Atravessou a rua às pressas. Quando chegou mais perto, contudo, estacou.

Era uma gente podre. As peles, fossem brancas, pardas ou pretas, estavam lívidas e manchadas por um maligno tom azul. Pústulas cobriam os rostos, expondo os ossos por baixo da carne corroída. Uma passista, trajando uma meia-máscara que imitava um beijo carnudo, dirigiu a Vinícius um olhar lânguido. Quando abaixou o adereço, contudo, a jovem exibiu um sorriso perpétuo, pois toda a carne na altura da boca fora removida de sua cabeça, como se descascada por um fatiador de frios.

A imagem foi marcada a fogo negro no cérebro de Vinícius, inescapável. Sentia-se gritando em desespero, mesmo enquanto se calava, estupefato, diante da marcha macabra. O som emitido pelos pandeiros, cuícas e tamborins chegava aos seus ouvidos em uma cadência acelerada e distorcida, soando ainda mais desarmônico do que Vinícius considerava ser o samba normalmente.

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