O Deus Solitário

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Ninguém nunca falou que seria fácil ser adulto, mas ninguém nunca mencionou o quão difícil seria. As noites parecem ser tão curtas quanto o dia, parecem que as horas escorrem pelos marcadores do relógio e vão arrastando o sol pra baixo e pra cima e quando você se dá conta cinco dias se passaram desde a última vez que você piscou o olho ou teve uma boa noite de sono. A vida adulta é tortuosa, e a vida adulta na cidade é tortuosa e longa.

Cinco anos de faculdade me trouxeram até aqui. Cinco anos de noites mal dormidas e de preocupações que me transformavam meu sono no de num golfinho quando tentava pregar o olho. Ainda consigo sentir a sensação dos dedos sobre a folha de isopor, o cheiro da cola quente e as câimbras nos dedos da mão enquanto coloria os espaços com os lápis de cor. Isso tudo parece uma memória, mas ainda é tão viva, como se eu tivesse vivido simultaneamente no passado e a uma hora atrás. Hoje eu me pego olhando para uma tela de computador que vive o dia a dia tanto quanto eu. Vejo as linhas se entrelaçarem e o cursor do mouse ampliar, clicar e arrastar numa música que foi incorporada a rotina, mas isso não me importa, isso me faz feliz. Foi isso que eu escolhi para minha vida, a minha vocação e a minha certeza de felicidade e de uma vida segura e satisfeita. Apesar de todos os sacrifícios, eu estou aqui, olhando para uma rua vazia da janela do segundo andar às 3h da manhã de uma terça-feira.

- Mari... Cê vem pra cama?

Aquela voz enrolada em sono corta o silêncio. Eu o aprendi a amar e posso dizer que estou feliz por estar com ele até este ponto. Ele ainda tem os mesmos cabelos rebeldes e a barba falhada que tinha no dia em que nos conhecemos. Antes, nos víamos nos finais de semana na casa dele ou na minha, quando saíamos para bares e shows na cidade que aos poucos aprendeu a não dormir; hoje, ele dorme do meu lado numa cama confortável para as minhas costas, dividindo o mesmo lençol e o mesmo banheiro. Aqui encontrei a felicidade, aqui eu estou em casa. Ele está vestindo uma camisa com alguns furos que virou pijama depois que eu insisti que não dava pra sair com ela, os óculos estão largados no criado-mudo próximo ao ventilador ligado.

Ele é um cara bem besta, mas no melhor sentido que a palavra pode carregar, me diverte com as piadas ruins e eu o acho a pessoa mais linda do universo. Ele é feliz, fica claro que dá pra notar, mas ele ainda guarda algo melancólico dentro dele. Já perdi a conta de vezes que eu passei pela sala e o vi com aquele olhar perdido e silencioso no rosto, um olhar que grita por se apegar numa esperança que a cada dia, a cada momento parece estar mais distante. A tela do computador ligada com o cursor pulsando, esperando por alguma palavra escrita mas que não vem como antes chegava. Eu lembro do dia que ele largou o emprego no escritório. Quando ele chegou determinado a fazer o que amava e me deu um longo beijo antes de sentar de frente pro computador e teclar compulsivo até que a história saísse da sua mente e dedos. Dentro de mim aquilo inflamou uma alegria por vê-lo feliz e compromissado, finalmente com o sentido do que queria fazer e lutando por aquilo. Alguns textos foram ficando longos e mais longos, ficando cada vez mais completos e detalhados, alguns poucos foram enviados para caixas de e-mail ou para caixas postais, esperando que alguém em algum lugar pudesse dar alguma dedicação ou importância para aquelas linhas. Os dias eram esperançosos quando pelo menos se dedicavam a mandar uma carta de recusa ou uma mensagem, mas na maior parte do tempo era como falar com uma parede, ou falar inspirado por horas pra um gravador desligado. Foi aí que as telas brancas começaram a aparecer, cada vez mais longas entre um texto ou outro, cada vez mais substituindo o brilho no olhar por um suspiro cansado e frágil.

Eu o observava, do outro lado da sala atolada nos meus projetos e afazeres, eu o via e aquilo derrubava uma pedra de gelo no meu coração. A peregrinação do quarto para a sala era cruel, ele acordava e se sentava de frente a tela por horas até perceber que novamente nada sairia. Ele então iria ler livros e iria ver filmes para se inspirar mas eu podia notar que aquilo só o derrubava mais. Os suspiros foram ficando mais frios e constantes, e ele aparentava sentir medo da tela. Ele temia falhar e sabia que estava falhando. Nós conversávamos a respeito e ele repetia a mesma frase em resumo: "Eu não consigo, tudo o que eu coloco não parece ser o suficiente. Isso realmente não é pra mim."

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