O dia do

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Acordo.

O canto dos pássaros lá fora preenche os meus ouvidos. O dia está um pouco frio, mas o sol, brilhando fortemente, solitário, libera calor. Não há nenhuma nuvem do céu; nenhum anúncio daquela tempestade prevista pelos meteorologistas, que nos alertaram a mais de uma semana que ela viria.

Mas ela não veio.

Ia ser o dia perfeito se chovesse, por isso planejei para tudo acontecer hoje. Ia ser igual a nos filmes: um dia quente, mas esfriado com a chuva; uma tempestade, raios trovões, se faltasse energia ia ser melhor ainda, mas, sem chuva isso é praticamente impossível de acontecer. Mas a falta de chuva não vai me impedir. Planejei tudo para hoje e é hoje que vai acontecer, faça chuva ou faça sol.

Descobri da traição a treze dias. Quando ele foi ao banheiro, peguei o celular dele e entrei nas mensagens. Ele não sabia que eu sabia a senha, porque nunca pegávamos o celular um do outro, então nunca foi necessário que um tivesse conhecimento da senha do outro; mas eu desconfiava que havia mais um na nossa história, então observei quando ele colocara a senha e a memorizei. Eram quatro números: 0305. Eu não me lembrava se havia algo importante na nossa vida que aconteceu nesse dia, mas talvez não fosse uma data. Talvez fossem só quatro números aleatórios. Mas hoje eu sei que era uma data. A data que eles começaram a namorar. A um ano atrás.

As mensagens eram claras: declarações de amor: "vc é minha vida", "te amo mais que tudo", "dorme bem, amor", "se cuida, mozão"; fotos de casais com "precisamos fazer isso um dia", "gostaria que fosse vc no lugar dela e eu no dele"; fotos de homens com "vc podia fazer esse cabelo", "vc nao é ele mas vc é mais gostoso"; pornografia com "queria q vc me fodesse assim", "a gente podia fazer igual", "imagina isso em mim"; marcações de encontros no cinema, na casa de um, num motel; o que eles iriam comprar pra quando tivessem sua casa... e claro, eu. "cuida pra ele n desconfiar", "e se ele descobrir?", "ele n sabe de nada", "é só eu falar q tenho uma reunião q ele n se importa", "ele nem imagina q nos dois tamo junto".

É mesmo, eu nunca desconfiei. Também nunca te segui pra sua "reunião", nunca fui até a casa dele e espiei pela janela –aliás, que erro deixar a cortina um pouco aberta e fazer bastante barulho–, nunca fui no cinema e sentei algumas fileiras atrás de vocês dois e fiquei vendo vocês se agarrarem o filme inteiro, nunca os segui para aquelas ilhas e observei vocês as férias inteiras, rindo, se beijando, passando a mão no outro. É, nunca desconfiei.

Ouvi a porta do banheiro ser destrancada – será que ele trancava a porta do banheiro quando ele estava em casa?, ou será que os dois iam juntos, para dar mais função ao pinto do que só mijar? – e coloquei o celular dele na mesa, onde ele tinha deixado.

"Tenho que ir. Reunião." Ele falou e me beijou. Um beijo seco, sem amor. Pegou suas coisas e foi embora. E eu o segui. Foi nesse dia que vi os dois, na casa do intruso, daquele que não pertence a minha vida. A santa cortina estava lá para me mostrar os dois, muito obrigado, cortina, foi por isso que agora você está em meu quarto. Desde então venho planejando como vai ser.

Tenho uma lista, com tudo escrito de como deve acontecer:

1. ele pega sol todo dia de manhã nunca me vê sempre com fone de ouvido alto

2. ele vai na igreja todo sábado à noite para preparar a missa de domingo fica até as seis sozinho

3. acabo com ele

4. o ônibus passa as seis eu pego o ônibus e volto pra casa

5. acabo com ele

6. a arma

Se alguma dessas coisas acontecer diferente, essa lista nunca existiu e eu faço o que eu quiser. Mas não há o que dar errado.

Como eu disse, ele está lá, pegando sol, de sunga, atirado na cadeira de praia, com óleo bronzeador em seu corpo todo, com fones de ouvido, escutando música, com os olhos fechados. Ele não me vê. Se vê, finge que não.

Vou até a loja de armas que tem no bairro – ela é ilegal, e somente poucas pessoas sabem onde fica – e compro munição para a minha arma. Na fila pra pagar, um homem entra e, junto, um vento gelado. Pago e saio. Lá fora, a temperatura caiu muito. Esfrego os braços com as mãos e vou em direção à igreja.

Ele está sozinho lá, e, ao me ver entrar, pergunta se quero ajuda. Digo que só vou rezar um pouco e me ajoelho. Ele continua arrumando a decoração para amanhã. Rezei para que Deus livre a minha alma do pecado que estou prestes a cometer, e que puna somente a eles, porque eu só estou me vingando; foram eles quem começaram.

Vou perto dele e ele se vira para mim. A faca de pão já está dentro dele. Não naquele lugar, como eu gostaria que fosse, mas no coração. Ele me olha com os olhos arregalados, a respiração ofegante, as mãos ao redor da faca. A serrilha da faca começa a girar em sentido horário. Cada volta ficando mais difícil de ser finalizada, até o ponto em que não dá mais, e eu paro. Olho para seu rosto, agora sem cor, sem vida, e há dois filetes de sangue escorrendo pelo rosto, começando nos olhos. Deixo ele cair dos meus braços, em direção ao chão e dou um chute em sua barriga, fazendo com que cuspa sangue.

O sino da igreja toca, e vou correndo para a parada de ônibus, batendo a porta atrás de mim. Espero até seis e sete, mas o ônibus não chega, então vejo uma criança parada em frente à igreja, do outro lado da rua. Ela está segurando um pirulito vermelho, redondo, como os olhos de um gato.

"Por que suas roupas estão sujas?" ela pergunta.

Olho para minhas roupas manchadas de sangue.

"Eu acabei de matar o homem da igreja" digo.

Ela coloca e tira o pirulito da boca.

"Quem é esse homem parado, atrás de você?" ela pergunta,

Me viro mas não há nada. Olho para a criança e mecho os ombros.

No caminho para casa, encontro uma mulher caminhando lentamente em minha direção. Ao passar por mim, ela sussurra:

"A criança."

"Vá pro inferno" digo.

"A morte" ela fala.

"Vá pro inferno" repito

Abro a porta de casa e ele me encara.

"Eu sei de tudo" falo.

Ele olha para minhas roupas ensanguentadas e fica assustado.

"Não é o que você está pensando" diz.

Pego a faca e tomo impulso. A cabeça dele agora está no chão, na porta da cozinha, e o corpo jorra sangue, como um vulcão, estendido no sofá.

Pego a cabeça, o corpo, a cadeira de praia e levo tudo para fora. Estico o corpo, encaixo a cabeça e pego a faca de novo. Agora as duas cabeças estão juntas: a menor dentro da boca da maior.

Me sento na frente da maquina de escrever. Não tenho inspiração para terminar a minha história. Era para ter acabado com ela ontem, mas estava muito empolgado para hoje, e hoje não consigo. Quem quer que leia ela vai falar: "E o final?", "Que tipo de escritor deixa uma história sem final?" "Por que não acabar?", mas eu não me importo. Não sei se alguém vai ler a minha história. Não sei se alguém vai se importar com ela. Só sei que ela não tem um final.

Pego a foto e olho para ela. Foi tirada a dois meses, quando nós dois fomos a uma festa. Eu estou beijando sua bochecha e ele faz uma careta para a câmera.

"Foi por você" sussurro.

Vou para meu quarto e arrumo as cobertas na cama.

Abro a gaveta e pego a arma.

Deito na cama e repito: "Foi por você".

Pego a arma e atiro.

Quem é esse homem parado, atrás de você? (CONTO)Onde histórias criam vida. Descubra agora