Cap 1: Renascimento

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Um cheiro barulhento entra pelas minhas narinas e embaralha meus sentidos. O som é úmido. A textura tem relevos solitários. Um calor friorento sobe pelas minhas vértebras. A visão é de dentro, ainda confusa. Um conjunto de explosões internas, de intensidades e durações diferentes, faz correr em meus labirintos a força vital. No aflorar da alma, que não sei se quer entrar ou sair de mim, fica em minha boca um gosto de novo e de repetição, e de novo de novo.

O tempo, como um desses velhos e hábeis piratas, vem logo roubando meus pensamentos.

Nada parece se encaixar, mas tudo está ligado. A vida (re)acende em mim. Todo o meu corpo é tocado por um sopro, que oscila entre brisa e ventania. Um sopro revigorante. Sinto cócegas. Na verdade, uma comichão que sobe da planta dos pés até o topo da minha cabeça. E toda essa energia se concentra no meio da minha testa, numa quentura estranha, num movimento helicoidal. É como se tivesse um redemoinho atuando bem nessa região da minha fronte.

Se isso dói?

Sinto vontade de rir. E eu rio. Um riso leve, despreocupado, gostoso. Dizem que ao nascer, choramos. Mas eu rio igual uma boba.

Não sei como sei de tudo isso, afinal eu não sei nem quem sou, mas eu sei...

Talvez não seja caso de nascimento, mas de renascimento.
E, na explosão de sentidos que me tomam, finalmente abro os olhos para valer.

Estou numa espécie de cápsula. Não há muito espaço para eu me mexer. Toco essa casca que me envolve e sinto uma superfície dura, porosa e ligeiramente fria. Porém, há luz. Uma luz que provocou o meu despertar. Ela entra por uma abertura, uma pequena fresta, que cresce à medida em que eu empurro essa falsa parede.

Força, força... mais um pouco de força... e... ufa... estou livre.
Meus olhos se fecham, não suportam tanta luz. É preciso me acostumar.

Os dois sóis queimam forte. Um é branco e o outro preto. Nós o chamamos de Originais, pois tudo o que existe tem essas duas forças opostas e complementares. E, no alto dos céus, a batalha entre os sóis rende uma mistura que dá cor do dia. Quando o branco ganha, tudo é mais colorido. Já quando há o domínio do preto, a escuridão se espalha. Agora há uma ligeira vitória daquele que deixa o céu claro. Um céu por aqui nunca é igual ao outro.

Olho para os sóis e lembro que minha mãe me disse bem assim: "por mais que se misturem eles nunca deixam de ser quem são porque eles reconhecessem e respeitam sua força original".

Mãe? Eu tenho mãe. E uma mãe que falava comigo. Então eu não nasci agora. Ou será lembranças de outra vida? Não!!! Eu me lembro agora. Sei também que possuo uma família. Mas não consigo saber o que aconteceu. A minha cabeça pesa. Sinto uma vertigem e caio. Estou fraca. Melhor não forçar a memória. Será que dormi tanto assim? Ou então, será que fui envenenada? A guarda não deixaria. E onde estão todos? Mamãe? Papai? Meus irmãos? Será que brincam de se esconder de mim? Só por que eu sou a caçula? Isso não tem graça. Um dia ainda vou crescer e vão deixar de aprontar comigo. Meu avô diz que nasci para ser rainha, daí ninguém mais vai dizer que não posso isso ou aquilo, que sou frágil, pequena, nova demais.

Uau! Agora que me dei conta que estava deitada numa concha gigante. Aliás, elas estão por todos os lados, de diferentes tamanhos e cores, presas numa espécie de coral flutuante. E estão úmidas por conta das ondas do mar. Ondas fortes, que se quebram no paredão de corais. Por isso eu ouvia sons de trovões. É o mar nervoso que parece querer devastar tudo o que encontra pela frente. Não quer deixa concha sobre concha. Foi esse agito marítimo que abriu a minha concha.

Tudo o que vejo por enquanto são ondas e conchas. E ao bater nas conchas e madrepérolas imensas, as águas revoltas se transformam em espumas com aroma de sal. Não me lembro de já ter estado neste ponto do reino.

UnicornionOnde histórias criam vida. Descubra agora