Cap 4: Lá e cá

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- Vamos Uny, deixe esse notebook e vamos à praia. Não acredito que vai perder um dia lindo de sol escrevendo. Ontem já ficou boa parte do tempo teclando. Não consigo aceitar isso. Vá até a janela e olha o mar te esperando. Larga de ser boba, menina!
- Deixa ela mãe, Unicórnio não gosta de água. Eles só tomam banho de arco-íris. Hahaha!
- Ah não, gente! Eu preciso salvar o mundo dos trevosos e vocês ficam de piadinha. Se eu não for agora o sol preto vai engolir o sol branco e a rainha Trevat triunfará de uma vez por todas. Vocês sabem o que isso significa? Tem noção!?
- Uau, que imaginação maninha. Mas, a mamãe está certa, hoje é nosso último dia aqui no litoral. Se não descer com a gente vai perder um monte de aventuras e daí sabe-se lá quando vamos ter outro feriadão em família num lugar maravilhoso assim.
- Como você quer que eu me divirta se eu tenho que salvar os Sete Reinos? Se eu falhar não haverá mais sol, mais praia, mais nada... só escuridão.
- Já chega Uny, isso tá demais, passando realmente da conta. Você tem que cair em si e viver como uma adolescente normal. Já tem 17 anos. Não pode viver só mundo da imaginação. Existe uma vida real acontecendo fora da sua cabeça.
- Mas mãe, você não entende, Unicornion é realidade pura. A gente que vive uma ilusão aqui. Você acha que só existe vida na Terra? São bilhões, trilhões de estrelas. E milhões de planetas no universo. Temos que despertar para o que realmente importa: diversão ou missão? Eu tenho uma missão importantíssima...
- Paaaaaaaaara! Não quero mais ouvir um "a" seu. Vá já trocar de roupa. Quero você, em dez minutos, no salão do hotel para tomarmos as três juntas o café da manhã e depois... praia. O seu pai já foi caminhar. Acha que ele está contente com esse seu comportamento? Ontem mesmo perguntou o que podemos fazer com você. Portanto, nossa paciência já se esgotou. Apresse-se e desça sem notebook. Estamos entendidas?
Putz! Mamãe pegou pesado. Dito isso, ela sai do quarto nervosa e minha irmã a segue, porém, antes de ir pelo corredor, me diz baixinho:
- Não se estresse maninha, ela só quer o seu bem. Relaxa e vamos curtir a praia. Depois, você volta para o reino dos unicórnios. Como é mesmo o nome do seu mundo encantado?
- Unicornion!
- Então, já estudamos em química que água é um condutor universal. Se você tiver dentro do mar pode ser conduzida mais facilmente para outros mundos.
- Não tinha pensado isso.
- Por que você acha que a água está presente nos mitos e rituais de todas as religiões e culturas? Se você ficar aqui não vai experimentar o poder e os mistérios da água. Além disso, você também precisa visitar o meu reino – o das sereias. Então, partiu mar?
Eu, que já estava carrancuda, sorrio. Minha irmã tem uma qualidade especial – consegue sempre me deixar bem.
Luisa sai me jogando um beijo de peixinho, uma de suas marcas registradas. Ela é linda e companheira. Minha melhor amiga. Nem parece desse mundo. Aliás, tenho certeza de que ela é sereia. Cabelos grandes. Olhos radiantes. Sedutora. Corpo cheio de curvas. Nem acredito que ela tem a minha idade. Eu sou magricela, desengonçada, esquisita. Não me acho bonita. Não mesmo, ao menos não aqui, nesta dimensão. Porém, quando estou em Unicornion, sou P-E-R-F-E-I-T-A. Isso porque retomo a minha forma original. Tenho um corpo legal. Uma beleza de encher os olhos. Uma magia incrível. Sou lá como sonho ser aqui.
Bem, depois dessa confusão inicial deste capítulo que acabou quebrando o ritmo da história, vou me apresentar e colocar um pouco de ordem nas coisas.
Meu nome é Uny. Na verdade, meu apelido é Uny. Meu nome é Manu. Não tenho nada contra o meu nome, pelo contrário, considero-o muito lindo, mas, na verdade, esse nome foi minha mãe quem me deu ainda bebê, quando ela me adotou.
Sim, eu sou adotada. E não tenho problema nenhum com isso. Sou bem resolvida. Fiz terapia durante muitos anos. E meus pais adotivos sempre foram muito sinceros comigo. Desde que estou com eles, nunca me faltou amor nem coisa alguma. Não tenho do que reclamar. Tenho uma família legal, moro numa casa confortável, estudo numa das melhores escolas da cidade, faço inglês, espanhol e dança. Também desenho, mas nisso, assim como na escrita, sou autodidata. Não paro, faço muitas coisas, mas minha paixão mesmo é escrever. Nasci para ser escritora. Minhas professoras dizem que tenho talento. Quando fiz quinze anos meu pai me deu de presente a edição de um livro meu com vários contos que eu havia escrito. Foi surpresa. Amei! E já ganhei alguns concursos na escola e uma na internet.
Escrevo muito, mas tem um pequeno detalhe: sempre falo sobre unicórnios. Minha mãe já me levou no psicólogo por isso, dizendo que parece uma ideia fixa. Porém, na verdade, o que escrevo são relatos das minhas lembranças e aventuras reais como unicórnio que sou. E também escrevo sobre os unicórnios que vejo e me visitam sempre contando algo que vale à pena ser escrito. Tenho contato direito com eles. É natural para mim. afinal, unicórnio atrai unicórnio. Tem gente que fala com gnomos, com fadas, com ets, com cachorros, com plantas, já eu, falo com unicórnios.
Agora mesmo estou escrevendo a minha saga para salvar Unicornion. A história vai sendo escrita conforme as coisas vão se desenrolando por lá. É tipo um diário da minha vida em outra dimensão. Sim, eu tenho duas vidas. Quer dizer, no mínimo duas. E eu vivo lá e cá ao mesmo tempo como unicórnio e como humana. Muita gente não entende isso, mas assim que é.
Quem mais me entende, compreende e rende elogios é a minha irmã. Um presente dos deuses. Eu e Luisa temos a mesma idade. E talvez tenhamos nascido até no mesmo dia e horário tamanha é a nossa identificação. Porém, eu não sem sei em que dia nasci nem que nome minha mãe biológica me deu.
Tenho poucas lembranças dela. A mais forte é que eu dormia entre cristais e apareceram uns vultos. Lembro-me de gritos, de minha mãe brigando. Mas, depois não me recordo mais de nada. Nunca mais a vi. Tenho uns flashes dela na minha cabeça. Era tão linda. Uma verdadeira rainha...
Com certeza essas lembranças estão assim confusas e apagadas porque pertencem a minha vida no outro planeta, em Unicornion. De algum modo eu fui enviada a Terra. Não sei se para me proteger ou para desenvolver algo aqui. Mas, o fato é que eu vivo lá e cá. Isso é loucura, mas é verdade.
Por mais que não me falte nada material e afetivo, sinto um vazio bem no fundo de mim.
Não sei o meu nome de nascimento.
Não sei a hora, o dia e o mês em que eu nasci, portanto, nem posso ter um mapa astral.
Não sei o que houve com minha mãe biológica.
Não sei como fui parar no salão do restaurante onde minha mãe adotiva me encontrou.
É um quebra cabeça no qual eu não consigo encontrar as peças que faltam.
Essas questões me impedem de ser completa.
Por isso, posso estar feliz, mas nunca completamente feliz. Posso estar satisfeita, mas nunca inteiramente satisfeita. Posso me sentir protegida, mas nunca plenamente segura.
Mesmo com acompanhamento psicológico eu não consegui resolver essas pendências. E de todas as terapias que já experimente, é escrevendo que me sinto mais completa, plena, realizada, satisfeita comigo mesma.
O universo dos unicórnios é o meu refúgio. Pena que sou incompreendida pela Ellen, minha mãe adotiva. Ela é a chefe de cozinha do hotel de meu pai. Não sei se ela atingiu primeiro o coração ou o estômago dele. Eles tiveram a Luisa e estavam satisfeitos até porque a rotina de trabalho dos dois é exaustiva. Mas quando, numa madrugada, ao sair da cozinha, ela me encontrou no salão do restaurante. Não havia mais ninguém. Só eu e ela. Foi amor à primeira vista. Deram entrada na papelada e conseguiram me adotar legalmente.
Porém, eles desconheciam algo grave: tinham adotado uma bebê unicórnio e não uma humana.
Sim. Eu sou uma unicórnio. Eu vim de Unicornion. Tipo, extraterrestre mesmo. Estou aqui na Terra em uma missão que não descobri ainda, mas eu sou de outro planeta. Só é difícil convencer as pessoas disso. Você acredita em mim? Tenho vários seguidores que acreditam. Virtualmente, sou até uma unicórnio famosinha. Já fiz até desfile para uma loja quando foi lançar uma coleção de roupas de unicórnio. A loja não foi para frente, mas ajudou a divulgar minha imagem. Não que isso seja meu objetivo, mas penso que quanto mais as pessoas souberem sobre unicórnios mais perto ficará o dia em que unicórnios e outros seres não precisarão mais se esconder dos humanos.
Não nego a minha origem. Meus cabelos são coloridos como os de uma legítima unicórnio. Amo maquiagem e roupas encantadas. Também prefiro me comunicar telepaticamente do que falando. E sou uma caçadora de arco-íris, que são os portais que nos levam a viajar pelo espaço dos unicórnios.
Meus cadernos têm capa de unicórnio. Tenho livros e mais livros sobre unicórnio. Adoro jogos de videogame de unicórnio. Tenho coleção de desenhos animados de unicórnio. No meu guarda-roupa o que se vê são blusas estampadas de unicórnio, bolsas de unicórnio, cobertas de unicórnio. Canecas, canetas, chaveiros... tudo de unicórnio. E vários deles de pelúcia. Minha mãe, que antes achava essa paixão bonitinha no começo, começou a chamar isso de obsessão. Tanto que ela hoje implica com tudo o que é de unicórnio. Unicórnio virou quase uma palavra proibida em casa. Às vezes eu a vejo como uma exterminadora de unicórnios. Terrível isso. Mas não vejo maldade nela. Apenas acho que ela tem medo de me perder, que eu volte de vez para Unicornion.
Não sou ciumenta, mas existe todo um tratamento diferenciado em casa. Com Luisa ela não tem essas neuras. Eu sempre vi em minha irmã uma sereia. E ela também já teve caderno com capa de sereia, blusas com estampa de sereia e outras coisas que reforçam essa identidade secreta dela. Até no álbum de família, tem uma foto dela bebê com cauda de sereia. Coisa mais fofa.
Outro fato revelador: minha irmã nada muito bem e lindamente, diferente de qualquer pessoa que eu já vi. Um dom. Aprendeu sozinha. Coleciona medalhas das olimpíadas do colégio e do clube onde somos sócias. Coincidência ou não, não faz parte de sua dieta peixe ou qualquer coisa que venha dos rios ou do mar. Olha que lindo: ela não come seus semelhantes. Mas, diferente de mim, ela não se assume sereia na frente dos outros. Antes, ela se mostrava para mim. Mas já faz um tempo que não brincamos de sereia e unicórnio. Essa foi a nossa brincadeira preferida ao longo de muitos anos. Eu acho que minha irmã está bem mais humana hoje do que eu. Ela foi deixando esse mundo de sereia para trás, talvez por medo ou preservação. Ainda preciso descobrir o que aconteceu antes que isso nos afaste.
Sereah tem muito de Luisa. Acredito que sejam a mesma pessoa. E isso não deve ser à toa. Se existe uma pessoa que quero ao meu lado para salvar o mundo é ela. Amigas-irmãs para sempre!
Olho o mar quebrando suas ondas através da janela. De fato, é lindo. E sopra uma brisa de aguçar os sentidos. Estávamos mesmo precisando de uns dias num lugar como esse. Mas, minha mãe tem que entender que só isso não me basta. Eu prefiro mergulhar no meu notebook e escrever, escrever, escrever sobre meu dia a dia em Unicornion do que pegar um bronzeado. Escrever é a forma de me conectar com a minha origem. E justamente agora que estou me lembrando de mais coisas, que despertei nos Sete Reinos e posso descobrir o que aconteceu comigo querem me sabotar.
Aiiiiiii. Ser adolescente não é fácil nem aqui na Terra nem em Unicornion.
São muitas cobranças, pressões, expectativas, incompreensões...
É uma época de muita efervescência, de muitos acontecimentos e transformações, mas também de muita solidão.
Mudar não é fácil. Mudar o corpo, a cabeça, a rotina... aliás, crescer é complicado.
Enquanto se é criança ninguém se importa se passamos o dia brincando com bonecas, ou falando com amigos imaginários, ou acreditando em seres fantásticos ou ainda vestidos de unicórnio, por exemplo. Quando crescemos, isso tudo vira um problema. Todo mundo se mete. E passamos a ser doentes, ridículas, lesadas... caso de internação! Por que a gente tem que deixar de ser quem somos só porque nosso corpo ficou maior? Nosso coração é o mesmo, ora essa. Para ser adulto é preciso negar nossa essência?! Por isso, a Terra está doente, com tanta gente infeliz.
Eu diria que quando se vira adulto na Terra e se nega a criança que há em seu interior, vira-se automaticamente um trevoso.
Tô fora! Não vou deixar de ser quem sou. Minha mãe que me perdoe, mas não posso viver para agradá-la. Sou uma unicórnio cheia de personalidade.
Se não sou uma unicórnio, quem sou? Um vazio. Um nada. Uma interrogação no universo.
Eu reconheço que não posso ser tão extremista. Enquanto estiver vivendo na Terra, preciso viver também como uma humana, uma unicórnio num corpo humano ou uma humana com alma de unicórnio, ou qualquer coisa parecido com isso. Sou grata aos meus pais por tudo o que me fizeram até então, por todo carinho, por todo acolhimento, por todo amor envolvido. E não quero que nada abale a minha relação com Luisa. Temo que a minha rebeldia a distancie de mim. Não é fácil viver tendo de ponderar tudo.
Vou deixar o computador um pouco de lado e ir à praia. Afinal, eu amo o mar e o reino das águas. É tão incrível esse movimento das marés e todos os mistérios submersos. Mas eu vou ao meu estilo, com meu biquíni cropped manga longa estampado de unicórnio. E quem sabe eu encontro uma fada oceânica para me contar como estão as coisas em Unicornion ou me levar diretamente pra lá, sem escalas, em uma de suas bolhas encantadas.
É estranho estar aqui e sentir saudades de outro mundo, mesmo sabendo que eu existo ao mesmo tempo lá e cá.

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