Cap 3: A missão da minha vida

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- Ela não pode ser de verdade, eles estão extintos há centenas de anos.

- Será que isso é algum tipo de magia pra nos enganar?
- Ela pode ser uma espiã dos trevosos. Não devíamos ter trazido ela aqui. Estamos perdidos.
- A gente pode espetar ela um pouquinho e se for um unicórnio vai vazar uma luz branca.
- Parem! Ninguém vai machucar a Uny.
- Vai defende-la, Sereah?
- Vou, pois fique sabendo que ela é minha amiga.
- Como pode falar em amizade? Você não a conhece, não sabe nem o que ela é.
- Shalimar, você precisa ensinar sua filha a não se misturar com estranhos. O comportamento dela coloca todo o reino Aquaticus em risco.
Eu não consigo abrir os olhos, apenas escuto uma falação distorcida em minha cabeça. São várias vozes ao mesmo tempo. E isso me incomoda, causando-me náuseas, enjoo e tontura. Há muita negatividade no que dizem. Palavras doem. Não acreditam em mim. Somente Sereah me defende. Não sei se acordar depois de 300 anos foi milagre ou castigo.
- Tudo isso é muito perigoso. Devíamos prendê-la. Que tal na masmorra de sal?
- Acho melhor leva-la à caverna dos peixes-dragão ou à toca das lulas-vampiro-do-inferno?
- Querem ficar quietos, vocês vão assustá-la!
- A presença dela aqui sim nos assusta. É uma ameaça ao nosso reino. Se algo acontecer você será a responsável Shalimar.
- Silêncio! Eu preciso pensar.
- Pensar?! Você colocou todo nosso povo em perigo. Não há o que pensar, você precisa se livrar dela. Você é a nossa rainha e precisa dar cabo do problema que arrumou para nós.
- E se ela for mesmo um unicórnio?!
- Então, rainha, nós corremos ainda mais riscos, pois os trevosos virão com tudo para cima da gente, acredito que a rainha Trevat virá em sombras aqui, capturar essazinha e nos punir. Seremos condenados à morte por escondermos e protegermos um unicórnio.
- Tudo isso é medo de desafiar a soberana das trevas? Achei que fosse mais corajoso ou que, ao menos, quisesse nos libertar da era da escuridão.
Sinto a aspereza das palavras. Os sentimentos e emoções contidos em cada sílaba, em cada tom, em casa pausa do que dizem. Parece que cheguei para provocar uma guerra. Finalmente consigo abrir os olhos. Mas, onde estou? Parece uma gruta. Há conchas, algas, corais e peixes por todos os lados. Aiii, tem muita água. Como estou respirando? Ah, existe uma bolha mágica em torno do meu corpo. Trata-se de obra do encantamento das ondinas para me proteger, para me manter viva no fundo do mar.
Estou nas profundezas de Aquaticus, o reino das águas.
Além de Sereah e Shalimar, há outros seres. Vejo um tritão, muito bonito. Cabelos dourados, músculos e uma cauda de peixe em vários tons de azul. Também há um ser com corpo de cavalo marinho e cabelo verde e trançado. E há um imoogi, que é uma espécie de dragão, só que incapaz de voar, também chamado de serpente das águas. Também avisto uma fada oceânica dentro de sua bolha alaranjada. E uma estrela do mar, cujos cílios que contornam seus braços têm movimento contínuo. Isso sem falar num polvo vermelho, cujos tentáculos não param quietos.
Todos eles indiscutivelmente discutem sem chegar a um acordo sobre o que fazer comigo. Estão tão ocupados com a discussão infundada que nem percebem que eu acordei. O tritão é o mais alterado, querendo me punir a qualquer custo. A imoogi também não apresenta ter compaixão nenhuma para comigo. Ao contrário de me fingir de morta ou de chorar, decido enfrentar essa gente. Não sei se é coragem ou loucura, mas está na hora de eu mesma decidir o meu destino. Quando me levanto, calam-se. Eu achei que os unicórnios causavam atração, no entanto, noto que eles têm medo de mim; chegam a se afastar.
Como uma unicórnio jovem como eu, que ainda não sabe nada de nada, aliás, que desconhece até mesmo o seu próprio nome, pode ameaçar alguém? E não sei onde achei tamanha ousadia para falar assim:
- O que foi? Perderam a língua? Desistiram de me furar, de me mandar à masmorra de sal ou para a caverna dos peixes-dragão?
A serpente chia:
- Ela é uma bruxa poderosa. Escutou tudo o que falávamos enquanto dormia.
- Deixa de ser boba, ela só fingia que estava desacordada – afirmou o tritão.
- Vamos dar uma chance dela se explicar - ponderou o cavalo marinho.
- Eu acho que vocês devem desculpas a ela – cobrou Sereah.
- Agradeço pelas defesas Sereah, mas estou farta dessa falação? Onde eu estou? Por que me trouxeram aqui? Quero falar com o líder de vocês.
Shalimar se aproxima:
- Sou eu. A rainha das ondinas e de Aquaticus.
- Ah! Você é quem tentou me matar há pouco com uma onda gigante.
- Peço perdão por esta recepção nada amistosa. Estou envergonhada. Mas eu sou a governante deste reino, preciso garantir a proteção de todos. Saiba que eu não permitiria que ninguém lhe fizesse mal. Aliás, somos um povo do bem, apenas assustado com tudo o que estamos passando.
- Este é o castelo das ondinas ou o palácio do reino Aquaticus?
- Nenhum dos dois. Praticamente tudo foi tomado pelos trevosos. Essa gruta é um dos poucos refúgios que nos restou, explicou Shalimar.
- Estamos indo cada vez mais fundo no oceano sem fundo fugindo dos trevosos. Tudo o que é nosso por direito foi tomado. Tornamo-nos um povo sem lar, açoitado, vulnerável. A desgraça dos unicórnios acabou com todos nós. Por culpa dessa raça todos nós fomos condenados - desabafou o tritão.
- Não é hora para isso, Deneb. Deixe-me continuar – cortou Shalimar.
- Antes de te encontrar na superfície, estava em uma reunião com representantes dos principais povos aquáticos. Vamos às apresentações. Deneb, o líder dos tritões, é esse que não para de reclamar. Cobramar, a comandante das serpentes do mar, também chamadas de imoogis. Enif, o patrono dos cavalos marinhos. Azha, a mãe das fadas oceânicas. Nash, o senhor dos polvos vermelhos. Electra, a condessa das estrelas-do-mar. Entre esses povos é feito o rodízio da coroa de Aquaticus, que agora está com as ondinas.
Fui mirando um a um e encontrei o que sobrou de uma nação. Faltavam brilho, vitalidade, equilíbrio e paz. Esses seres não nasceram para viver em meio a conflitos e inseguranças. Imagino o quanto a queda dos unicórnios custou a todos eles.
Shalimar continua:
- Resolvi te trazer aqui porque sua aparição é o que de mais extraordinário aconteceu nas últimas centenas de anos. Discutíamos a nossa resistência às investidas de Trevat quando você apareceu. Peço desculpas por ter te testado lá na superfície, mas, como já disse, depois dessa ofensiva dos trevosos está difícil saber em quem confiar, no que acreditar.
- Essa unicórnia que nem saiu das fraldas é a nossa esperança para lutar contra Trevat, a rainha das trevas? Melhor nos entregarmos de uma vez aos trevosos.
- Cobramar, deixe de pessimismo. Você tem uma ideia melhor? – perguntou Shalimar.
- Os cavalos marinhos apoiam uma união em torno de... qual é seu nome, mocinha? – indagou Elif.
- É.... (fico sem saber o que responder, afinal, não consigo lembrar do meu nome)
- É Uny – respondeu Sereah.
- E como vamos saber se ela é uma unicónia de verdade? – questionou Deneb.
- Eu já a submeti a um teste na superfície. Ela é imune aos poderes do tridente.
Muitos arregalam os olhos e querem saber mais detalhes do acontecido, mas são interrompidos pelo representante dos polvos vermelhos, que fala com voz de quem guarda segredos:
- Ela é a profecia que se cumpre. Pelas profundezas dessas águas, em ecos submarinos, sempre se ouviu sobre a filha dos puros dos puros que se levantaria das cinzas e lideraria outras seis puras, perfazendo com ela sete luzes sagradas, que unificadas, levariam novamente a luz a reinar sobre a escuridão.
- Isso é só uma lenda... – duvidou o tritão.
- Não! Analisem com atenção. Faz todo sentido. A Uny ressurgiu do nada e é filha da última rainha de Unicornion – exclamou Sereah.
- É verdade isso? – indagou o cavalo marinho.
- Sim, sou filha da rainha Adhara.
- Vocês não querem que eu acredite nisso, não é? – duvidou o tritão.
- Mas ela disse que é! A palavra sempre teve valor para nós – falou a estrela do mar com uma voz doce.
- Precisamos de uma prova. E uma prova contundente – falou a serpente.
- Vocês não ouviram minha mãe dizer que ela resistiu ao tridente? – disse Sereah.
Novamente, inicia-se uma falação sem fim, colocando em dúvida quem verdadeiramente sou. Eu só quero sair daqui. Não suporto essas discussões. Essa energia pesada me causa dores. O meu corpo esquenta. Começo a sentir como se eu fosse acender ou desmaiar novamente. É um turbilhão dentro de mim. Como sou complicada! Nessa hora, o meu chifre começa a brilhar, mas brilha tanto que ilumina toda a gruta. E não é uma luz qualquer. É uma luminosidade flamejante que varre a escuridão e a negatividade como uma explosão de fótons.
Quando meu cifre volta ao normal, o que vejo é bem diferente da confusão de antes.
Cobramar é a primeira a se curvar fazendo reverência diante de mim. Os outros a seguem.
- O que mais você sabe sobre a profecia, polvo? – perguntou Shalimar.
- Uny terá de reunir seres luminosos em todos os sete reinos, alguém que seja de linhagem real e que ao mesmo tempo tenha um coração puro para assim derrotar Trevat.
- Com essa onda dos trevosos restam muitos poucos puros. Os reinos estão dilacerados, mergulhados em guerras sem fim. São territórios muito perigosos e hostis. Precisamos de milhares de guerreiros e não de sete crianças. Isso é uma missão praticamente impossível – argumentou o tritão.
- Vejo que seu coração já está quase todo dominado pelas sombras. Falta pouco para você virar um deles. Mas ainda existe uma esperança e ela está aqui, diante de nós. Temos que agradecer por isso e apoiar da melhor forma! – exclamou Shalimar.
- O seu discurso é muito bonito. E se isso der certo, Uny salvará seu reinado desastroso e seu nome será lembrado por toda história, afinal, foi você quem a encontrou na superfície. Creio que vai se candidatar a ir com ela representando Aquaticus, não é Shalimar? – provocou o tritão.
- Parem de perder tempo com essa disputa. É Uny quem tem de escolher. Só ela é capaz de identificar e reunir os seus raios luminosos – observou Nash.
- Eu sugiro então que cada um de nós reúna o mais rápido possível as jovens de cada povo que se encaixem na descrição da profecia e tragam aqui para Uny escolher – falou a rainha das ondinas.
Com propriedade eu intervenho:
- Não será preciso, Shalimar, já fiz a minha escolha. Quem vai comigo é Sereah.
- Eu sabia, isso tudo já está combinado. Vou embora e proteger meu povo. Uma unicórnia e uma ondina juntas tentando salvar o mundo é, no mínimo, absurdo. Não vou compactuar com essa insanidade geral – o Tritão, enciumado, falou e se retirou.
- Não ligue para ele, Uny, infelizmente está muito contaminado pelas trevas. Está quase se tornando um trevoso. Ele não era assim antes. Peço desculpas por ele, mas é triste ver tamanha mudança. Pode contar com as serpentes-do-mar. E eu também tenho uma filha, a Víbora, uma legítima princesa. Ela pode ir junto com você. Afinal, toda ajuda é necessária.
- Será um prazer conhecê-la Cobramar, mas eu já fiz a minha escolha.
- Shiiiiiiiiii. Mas no caso de acontecer alguma coisa com Sereah, nunca se sabe dos perigos, minha filha está à disposição – insistiu Cobramar, com sua voz chiada.
A serpente se enrola toda em torno de Sereah, provocando um pequeno redemoinho que a derruba e continua sua fala:
- Como se vê, Sereah é frágil e creio que a rainha Uny vai precisar de alguém forte para essa empreitada. E nós já governamos o reino das águas, temos sangue real e a pureza corre sob nossas escamas.
- Você é bem convincente, Cobramar, mas eu acredito na força de Sereah.
- Não se precipite, vou buscar minha filha. Tenho certeza de que assim que botar os olhos nela, mudará de ideia. Até breve, Uny – disse a emoogi, saindo às pressas.
O cavalo marinho pede a palavra e pergunto se ele também vai oferecer sua filha para ir comigo.
- Não. Vou oferecer uma escolta até você sair do reino aquático. O que nós, os cavalos marinhos, pudermos fazer para te proteger, faremos. Somos guardiães e vamos honrar isso.
- Ufa! Sou grata! Será de grande valia para a minha missão.
Agora que me dei conta de que sem pensar eu assumi uma missão gigantesca. Ninguém me perguntou se eu queria cumprir essa profecia. Simplesmente me jogaram nessa loucura e vou ter que consertar o que meus antepassados fizeram. No calor do momento eu chamei para mim uma responsabilidade imensa. Mas, e agora?
As falas seguem:
- Nós também vamos te acompanhar, rainha. Você vai precisar de toda magia em torno de si para te dar a sustentação necessária. Quando as trevas virem a luz, certamente virão para cima. Vamos até o portal de Aquaticus com você e Sereah. Respeitamos sua decisão e te apoiamos – disse mentalmente a mãe das fadas oceânicas.
- As estrelas do mar te saúdam, desejam sorte e irão contigo até onde nos for permitido. Estou muito feliz de ter novamente um unicórnio entre nós – afirmou Electra, girando como se fosse um cata-vento.
Agradeci e ouvi então o polvo.
- Você conduz a esperança de todos os que ainda não se tornaram trevas. Não quero colocar peso sobre você, mas se você cair, o que resta de luz nos sete reinos cairá na escuridão. Ah, e precisa se apressar, pois falta pouco para o sol preto consumir o sol branco.
- Bom, todos já falaram, então dou por encerrada a reunião. Uny precisa descansar para sua jornada. E eu vou cuidar dela até lá – prometeu Shalimar.
Todos se retiram e eu, que acordei há pouco numa realidade totalmente estranha, não tenho a menor ideia do que está acontecendo e no que eu acabei de me meter.
Sou apenas uma menina, que não sei de onde vim e nem para onde vou, mas que já tenho a missão de salvar o mundo. O que será isso? O fim dos tempos ou simplesmente a adolescência?

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