PRÓLOGO Flores e Perdas

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NOTA: Acompanha a trilha sonora original que inspirou a autora - vídeos)

Ille nihil dubitat qui nullam scientiam habet

(PROVÉRBIO)

Tradução: Nada duvida quem nada sabe

DEDICADO

À pequena Pedrita, com todo o meu amor;

por sua lealdade e afeto incondicionais, até o fim!

Dizem que com o passar do tempo, as lembranças passam por uma "remodelagem" - mais ao gosto de nossas fantasias e desejos, do que à fidelidade dos fatos. Dizem até que fabricamos o que os especialistas chamam de "memórias falsas". Mas eu quero muito acreditar que as poucas lembranças que tenho do meu pai sejam verdadeiras. Ele foi a única pessoa que me amou de verdade.

Antes de Adriano...

Espiando pela janela do passado, lembro-me da vontade louca que eu sentia de escapar. Não aguentava mais ver meu pai definhando... Acho que foi por isso que a enfermeira me levou ao jardim. Para que eu tivesse um intervalo daquele ambiente tão pesado, tão sombrio... Eu tinha apenas cinco anos e já não sabia mais o que era brincar.

As flores do jardim balançavam ao sabor do vento; suas cores vibrantes festejando ao sol. Era uma linda tarde de primavera. Tão bom sentir o calor do sol no meu rosto, a grama sob os meus pés... Eu podia pular e correr. Podia rodopiar e rir.

Minha alegria não durou muito; ou o tempo passou voando. Logo, a enfermeira segurou minha mão com força, conduzindo-me de volta para dentro do hospital. Eu não queria ir... O contraste entre o calor agradável do jardim e o interior escuro e frio foi chocante. Eu comecei a tremer e meus braços se arrepiaram.

Indiferente ao meu desconforto, ela continuou me puxando pelo corredor até alcançarmos o quarto triste e mal cheiroso, onde meu pai morria aos poucos.

Como de costume, ele estava recostado aos travesseiros. Assim que me viu, seu rosto iluminou-se num sorriso improvável para um moribundo. Eu não me conformava! Só alguém cheio de vida poderia sorrir daquele jeito. Independente de todo o sofrimento, era sempre desse jeito que papai olhava para mim: com um sorriso no rosto.

Aquele sorriso me fez sentir culpada por querer fugir.

A enfermeira encarou-me, complacente. Ela era legal, mas eu não gostava da maneira como beliscava as minhas bochechas.

-Ele precisa de você. Seja corajosa, mocinha - sussurrou.

Dei um sorriso forçado e caminhei em direção à cama. Papai me abraçou e passou as mãos pelo meu cabelo - com todos aqueles fios e tubos atrapalhando-lhe os movimentos. Respirando com dificuldade, ele perguntou como foi o passeio. Então, eu lhe falei das flores, do vento, e do sol, e de como eu queria que ele saísse para brincar comigo lá fora. Eu lhe disse que odiava aquele quarto porque cheirava a remédios e desinfetantes (tinha certeza de que o cheiro estava deixando papai cada vez mais doente).

Bagunçando o meu cabelo, ele exalou baixinho um arremedo de riso... Mas eu notei que havia lágrimas em seus olhos.

Mamãe chegou logo em seguida. Senti as ondas hostis emanando dela, assim que apareceu na porta. Ela também cheirava mal, mas não era cheiro de doença e desinfetante. Era de fritura e suor – do uniforme engordurado que usava para trabalhar na lanchonete. Todos esses odores combinados deixavam o ambiente enjoativo. Insuportável.

Os olhos dela cravaram em mim. Entendi o "recado" e pulei para fora da cama. Meu pai protestou, dizendo que estava tudo bem, que eu poderia ficar... Eu não consegui tirar os olhos de minha mãe, enquanto me afastava para o canto oposto.

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