O animal ronda

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Estávamos preparando um rápido jantar – a base de macarrão instantâneo com queijo – sem prestar muito atenção ao noticiário da TV. Carmen tinha aumentado o volume para que pudéssemos ouvir da cozinha. Mas, cara! Eu estava cansada demais para "processar" qualquer informação!

Enquanto cortava tomates para fazer uma salada, senti meus braços tão rígidos que me perguntei se voltariam ao normal. Não imaginava que limpar aqueles banheiros exigisse tanto esforço físico. Era pior do que cortar grama ou levar alguns cães preguiçosos para passear.

Se eu fosse filosofar a respeito, acho que a pior parte do serviço era deixar aqueles azulejos brilhantes e secos... Só para, cinco minutos depois, algum freguês menos educado aparecer e destruir todo o meu trabalho. Argh!

-... a guarda florestal está à caça do enorme felino que foi avistado nas imediações por pessoas que praticavam jogging... - dizia o repórter na TV. - Os moradores estão aterrorizados, e ninguém quer frequentar o parque enquanto o animal não for capturado. Rugidos ensurdecedores foram relatados por várias testemunhas, perto da meia-noite...

Ouvi distraidamente a matéria, enquanto soltava um bocejo atrás do outro.

-Você está acabada, garota! - Carmen me lançou um olhar de pena, e novamente avaliou a minha aparência pouco robusta. - Tem certeza de que vai aguentar o tranco?

-As aparências enganam. Não sou tão fraquinha assim. Eu já passei por situações muito piores. Não no sentido físico, se quer saber... Mas eu não tenho medo de trabalhar, não. Tenho medo de ficar desempregada, isso sim!

Ela meneou a cabeça. Não havia o que argumentar. Para uma garota como Carmen, que também dependia do trabalho para se sustentar, era fácil compreender o meu ponto de vista.

-O que exatamente a senhora viu? - continuava a dizer o repórter.

-Ah, foi a coisa mais pavorosa... Nem sei como descrever! Era uma pantera com os olhos iluminados pelo luar. Ela parou a uns dez metros de onde eu estava, encarou-me por um instante aterrador e depois prosseguiu calmamente. Parecia estar procurando alguma coisa, pois farejava o ar o tempo todo... Embora fosse uma noite clara de luar, as árvores projetavam muitas sombras. Só pude ver que o animal era enorme, mesmo. Nunca vi um felino daquele porte. Bem maior do que um leão, ou um tigre... Mas era mesmo uma pantera...

-Tem certeza...? - indagou o repórter, um tanto cético. Devia estar achando tudo aquilo um exagero. – Uma pantera com olhos faiscantes, na pacata Comarca Celta?

-Meu filho... - a senhora retrucou, irritada. – Acho que sei a diferença básica entre os felinos. Não faltei às aulas.

-A-han... – constatei, divertida, que agora a voz dele revelava cosntrangimento. O homem pigarreou, antes de concluir a matéria: - A polícia recomenda que a população evite a área, e que as pessoas não andem sozinhas pelo parque, até que o animal seja capturado. Paul LeFleur, direto do Porto do Sul...

-Era só o que faltava! - Carmen riu, colocando a jarra de chá gelado sobre a mesa. - Um bichano super desenvolvido rondando a cidade. Você trouxe ele junto contigo, é?

Rá-rá! Muito engraçado.

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Os dias passavam rápido demais, mas eu estava feliz por ter um emprego e um teto sobre a minha cabeça.

O trabalho era puxado. Meus músculos demoraram um pouco a se acostumarem com a rotina pesada. O pior de tudo era a dor nas costas e nos joelhos. Mas eu estava decidida a ignorá-la. Tinha a juventude a meu favor. Havia outras pessoas que faziam esse mesmo tipo de trabalho a vida toda e nunca ficavam cansadas ou doentes. Por que eu deveria ser diferente? Não me considerava nenhuma dondoca. Na verdade, eu tinha horror a garotas que se comportavam como tais.

Eu sentia em Carmen a possibilidade de nos tornarmos boas amigas. Sempre alegre e falante, ela compensava o meu jeito calado. Por outro lado, a irmã de Bob via em meu silêncio a qualidade essencial de uma ouvinte. A gente se dava bem assim: ela desabafando sobre as brigas com o namorado - um rapaz que trabalhava na marina, e eu fazendo eventuais comentários de encorajamento. Mas não passava disso, pois eu já tinha percebido que Carmen era o tipo de garota que não gostava de ser contrariada. Especialmente em se tratando de seus relacionamentos amorosos. Ela só ouvia o que queria ouvir... Se lhe confessasse o que realmente pensava do seu namorado, ela não iria gostar nem um pouco.

Tomando esses pequenos cuidados – de não me expor a atritos desnecessários - tudo corria às mil maravilhas... Até o primeiro final de semana na casa dela, quando Carmen decidiu que eu deveria agitar a minha vida amorosa. Ela me arrastou para as baladas que fervilhavam em alguns recantos (para mim, obscuros) situados nos arredores de Porto do Sul. Eram lugares que o seu namoradinho costumava frequentar. Mais uma razão para eu não ficar nem um pouco empolgada.

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