Capitulo 1 - Caminhos de lama

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Tremo. Minhas roupas estão encharcadas e mal posso me mover. Meu corpo sente a dor do esforço que fiz e toda vez que eu levantava os pés, era arrastada pela correnteza dos falsos rios que tomaram conta das ruas. Eu estava a chegar em casa quando a chuva começou, mas ela foi tão forte que estou de volta a porta da escola e então desisti.

Estar aqui não é tão ruim, sentada debaixo da chuva convidativa e envolvente quanto um abraço materno, era como o lar que não tenho. Virei minha cabeça para cima do morro e por um milagre quase divino, ainda vejo o topo de minha casa. Isso é bom... o barraco onde vivo ainda não foi completamente arrastado, mesmo assim pude ver alguns móveis sendo arrastados para o rio.

A chuva abrandou e pude finalmente diminuir a pressão com que eu apertava a grade da escola, segurando-me para não ser arrastada pela enxurrada. Tentei um passo, outro e mais um. Quando percebi, eu já estava saltitando, dançando ao som da chuva e brinquei como não fazia a muito tempo. Quando a chuva passou, minha felicidade foi com ela, percebi que era hora de voltar para casa.

Sobrava muito pouco da casa branca de madeira que não tinha paredes, portas e as janelas estavam fora das dobradiças, assim como o telhado estava em completa desordem. Ainda assim, meu pai teve tempo para me lançar um olhar indignado quando cheguei em casa, silenciosamente ralhando comigo enquanto incrustava em si um sorriso diplomático ladeado e me indicando onde sentar.

Olhei em volta buscando o motivo da reação branda quando meus olhos param no jovem padre que se erguia da poltrona do meu pai no canto mais escuro da sala até próximo da mesa onde estava a vela e sentou-se à mesa. Tomando um pedaço do pão e uma taça de vinho, ofereceu-me comida enquanto falava de Deus, se referindo a mim e ao meu pai quase com o mesmo respeito. O padre era tão bem aceito em uma conversa como eu mesma, por ser tão jovem como ele, era posto em desconfiança. Porém, ninguém ousava desrespeitar um homem de Deus, o mesmo não se aplicava a mim que não tinha qualquer influência.

Eu era, supostamente, a ajudante de Soren, um personagem que inventei há três anos. Com morte do mestre artesão, Orion, o ateliê de livros ficou vazio, eu que já trabalhava com ele quando me especializei na confecção de livros e estive tomando conta do ateliê, fornecendo livros para todas as famílias abastadas da região, os poucos que sabem ler. Ganhei uma bolsa para ser ouvinte no fundo da sala da quarta série, para poder levar informações úteis do que o jovem e misterioso Soren deveria escrever. Infelizmente sou usada como bode expiatório para toda sorte de coisas. Por sorte, meu trabalho é muito precioso para que me joguem na rua como uma indigente, mas certamente não é o bastante para não receber as surras no lugar dos meus colegas de classe.

Meu pai me deu um outro olhar cheio de raiva quando chegamos ao tema da lavoura. Há três anos eu sofri uma lesão no joelho, desde então, sou inútil. Quando um comandante veio a Abgetreten no ano passado e viu meu estado, se apiedou do meu andar manco e deu proibição na minha participação, enquanto ele esteve presente eu fui paga. Mas este ano, com o comandante longe eu não serei beneficiada.

Quando voltei a mim,  percebi que meu pai tinha subido com o padre para mostrar onde ele poderia dormir esta noite, já que sua frágil casa foi inteiramente arrastada pela chuva torrencial. Ele,  obviamente, mostrou a minha cama. Isso significa que irei dormir junto aos cavalos no estábulo da cidade com os meus irmãos, como quando éramos crianças.

Por ser moça e primogénita de minha mãe, tive uma cama quente que mesmo sendo dura era uma cama, meu pai espera um bom dote dentro de alguns anos, mas estou nervosa. Ainda não disse ao meu pai, mas não desejo me casar. Quero seguir a tarefa de cuidar dos livros e adotar alguma criança perdida da guerra, como eu mesma sou. Afinal, meu pai não está mais vivo desde que mamãe morreu.

Mas eu sei que isso não vai acontecer. Na minha sala, só tem rapazes. Raramente donzelas se tornam maestrinas e geralmente isso não é comentado. Eu sou a única capaz de fazer meu serviço agora, mas não me dou falsas esperanças, logo virá algum aprendiz de Rompení e me tomará o lugar mal conquistado.

Eu gostaria de estudar em Rompení! A academia do tamanho do palácio Real, mesmo que eu não possa chegar tão perto de lá, ainda posso ver desde a praça central o topo da sua torre. Um amigo meu foi estudar na academia de letras Rompení no ano passadoe em apenas dois anos ele voltará para casa. Desconfio que meu pai tenha feito algum acordo secreto com ele, caso contrário estaria casada como todas as outras garotas da minha idade.

Terminando de lavar as roupas as estendi automaticamente. O ar deixou meus lábios em um suspiro, estou imunda. Ir ao rio a essa hora não é uma opção.
Caminhei nas veredas enlameadas, com os pés afundando e não querendo voltar, quando cheguei, me joguei no monte de feno que sabia pertencer a Jorge, meu irmão favorito. Estava tão húmido como eu, mas cansada como estava, adormeci imediatamente.

Álya Lourdes é um nome diferente como qualquer outro escolhido em um leito de morte, esse é meu nome. Meu pseudônimo, Soren, é elegante e uso-o para me fingir rapaz. É hilário como as coisas pessoas são crédulas. Ingênuas... todas elas, mas ao mesmo passo que são ingênuas e ignorantes, as pessoas podem ser cruéis. É muito interessante que não descubram quem realmente faz seus registros, caso contrário,  serei morta por bruxaria e consumada ao assumir o papel do homem abastado em vez do próprio, que se resumia a lavoura e casamento.

Eu ainda não sei como não descobriram que Soren não é nem um aprendiz afastado da célebre academia e que não estou apenas passando o que ouço nas aulas, mas escrevendo. Eu realmente não sei como menti de forma tão elaborada, mas quando for descoberta serei sentenciada a pena de morte, como manda a lei.

A Aprendiz - Lourdes the Rosemary Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora