21 Continuando a palestra

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– A palestra, senhora Laura – exclamei com interesse –, sugere
numerosas interrogações, relevar-me-á a curiosidade, o abuso...
– Não diga isso – retrucou, bondosa –, pergunte sempre. Não estou em
condições de ensinar; todavia, é sempre fácil informar.
Rimo-nos da observação e indaguei em seguida:
– Como se encara o problema da propriedade na colônia? Esta casa, por
exemplo, pertence-lhe?
Ela sorriu e esclareceu:
– Tal como se dá na Terra, a propriedade aqui é relativa. Nossas
aquisições são feitas à base de horas de trabalho. O bônus-hora, no fundo, é o nosso dinheiro. Quaisquer utilidades são adquiridas com esses cupons, obtidos por nós mesmos, a custa de esforço e dedicação. As construções em geral
representam patrimônio comum, sob controle da Governadoria; cada família espiritual, porém, pode conquistar um lar (nunca mais que um), apresentando trinta mil bônus-hora, o que se pode conseguir com algum tempo de serviço.
Nossa morada foi conquistada pelo trabalho perseverante de meu esposo, que veio para a esfera espiritual muito antes de mim. Dezoito anos estivemos
separados pelos laços físicos, mas sempre unidos pelos elos espirituais.
Ricardo, porém, não descansou. Recolhido ao “Nosso Lar”, depois de certo período de extremas perturbações, compreendeu imediatamente a necessidade do esforço ativo, preparando-nos um ninho para o futuro. Quando cheguei, estreamos a habitação que ele organizara com esmero, acentuando-se nossa ventura. Desde então, meu esposo ministrou-me conhecimentos novos. Minhas Lutas na viuvez haviam sido intensas. Muito moça ainda, com os filhos tenros, tive de enfrentar serviços rudes. A custa de testemunhos difíceis, proporcionei aos rebentos de nossa união os valores educativos, de que eu podia dispor, habituando-os, porém, muito cedo, aos trabalhos árduos. Compreendi, depois, que a existência laboriosa me livrara das indecisões e angústias do Umbral, por colocar-me a coberto de muitas e perigosas tentações. O suor do corpo ou a preocupação justa, nos campos de atividade honesta, constituem valiosos
recursos para a elevação e defesa da alma. Reencontrar Ricardo, tecer novo ninho de afetos, representava o céu para mim. Durante anos consecutivos, vivemos a vida de perene ventura, trabalhando por nossa evolução, unindo-noscada vez mais e cooperando no progresso efetivo dos que nos são afins. Com o correr do tempo, Lísias, Iolanda e Judite reuniram-se a nós, aumentando nossa felicidade.
Após ligeiro intervalo, em que parecia meditar, minha interlocutoraprosseguiu em tom grave:
– Mas a esfera do globo nos esperava. Se o presente estava cheio de
alegria, o passado chamava a contas, para que o futuro se harmonizasse com a lei eterna. Não podíamos pagar à Terra com bônus-hora e sim com o suor honrado, fruto de trabalhos. Dada a nossa boa-vontade, aclarava-se-nos a visão, relativamente ao pretérito doloroso. A lei do ritmo exigia, então, nossa volta.
Aquelas afirmativas causavam-me viva impressão. Era a primeira vez
que se feria tão fundo aos meus ouvidos, na colônia, o assunto referente a encarnações pregressas.
– Senhora Laura – exclamei, interrompendo-a –, permita, por obséquio, um aparte. Perdoe a curiosidade; no entanto, até agora, ainda não pude conhecer mais detidamente o que se relaciona com o meu passado espiritual.
Não estou isento dos laços físicos? Não atravessei o rio da morte? A senhora recordou o passado, logo após sua vinda, ou esperou o concurso do tempo?
– Esperei-o – replicou, sorridente –; antes de tudo, é indispensável nos
despojarmos das impressões físicas. As escamas da inferioridade são muitofortes. É preciso grande equilíbrio para podermos recordar, edificando. Em geral, todos temos erros clamorosos, nos ciclos da vida eterna. Quem lembra o crime cometido costuma considerar-se o mais desventurado do Universo; e
quem recorda o crime de que foi vítima, considera-se em conta de infeliz, do mesmo modo. Portanto, somente a alma muito segura de si recebe tais atributos como realização espontânea. As demais são devidamente controladas no domínio das reminiscências e, se tentam burlar esse dispositivo da lei, não
raro tendem ao desequilíbrio e à loucura.
– Mas a senhora recordou o passado de maneira natural? – perguntei.
– Explico-me – respondeu bondosamente –; quando se me aclarou a visão interior, as lembranças vagas me causavam perturbações de vulto.
Coincidiu que meu marido partilhava o mesmo estado d’alma. Resolvemos
ambos consultar o assistente Longobardo. Esse amigo, depois de minucioso exame das nossas impressões, nos encaminhou aos magnetizadores do
Ministério do Esclarecimento. Recebidos com carinho, tivemos acesso em primeiro lugar à Seção do Arquivo, onde todos nós temos anotações particulares. Aconselharam-nos os técnicos daquele Ministério a ler nossas
próprias memórias, durante dois anos, sem prejuízo de nossa tarefa do Auxílio, abrangendo o período de três séculos. O chefe do serviço de Recordações não nos permitiu a leitura de fases anteriores, declarando-nos incapazes de
suportar as lembranças correspondentes a outras épocas.
– E bastou a leitura para que se sentisse na posse das reminiscências? –atalhei, curioso.
– Não. A leitura apenas informa. Depois de longo período de meditação para esclarecimento próprio, e como surpresas indescritíveis, fomos submetidos a determinadas operações psíquicas, a fim de penetrar os domínios
emocionais das recordações. Os Espíritos técnicos no assunto nos aplicaram passes no cérebro, despertando certas energias adormecidas... Ricardo e eu

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