Não lembro ao certo qual minha primeira memória, nem quando tomei conhecimento do mundo. Os primeiros anos de vida são confusos e nebulosos, como um grande bloco de informação ao qual nunca vou ter acesso. É assim com todo mundo, não é? A gente ouve os mais velhos falando "sobre aquela vez em que você agarrou o cachorro da vizinha" ou que "você disse para o chefe da sua mãe que ele era barrigudo", e a verdade é que você não tem ideia do que eles estão falando. Limita-se a sorrir e acenar com a cabeça e esperar que o assunto termine.
E não é assim que a vida é vivida? Acenando e balançando a cabeça quando não se sabe o que fazer? Acredito que para algumas pessoas isso seja sim, dessa forma. A mim nunca foi permitido o luxo de fingir que os problemas não existiam e simplesmente esperar até que eles fossem embora.
Confesso, gostaria de poder mergulhar nessa indulgência aqui e ali, mas não posso. Se eu simplesmente fingisse que não existia, no dia seguinte o menino babaca, montado no skate que provavelmente custava mais do que o a dignidade dele, ainda estaria ali, me esperando, me fazendo desejar nunca ter nascido. A garota que sentava ao meu lado na escola ainda estaria ali, me olhando de canto de olho, fofocando com as amigas entre risos mal disfarçados, perguntando em sussurros gritados se era alguma doença que me fazia ser daquele jeito, questionando se eu não deveria passar cloro pra ver se limpava.
Aqui preciso fazer uma pausa. Uma ressalva. Estamos falando de crianças idiotas de dez anos. Crianças brancas, ricas e mimadas, criadas numa bolha construída por seus pais, que estavam, pela primeira vez, tendo seu mundo invadido por esse extraterrestre coberto em couraça preta que facilmente se destacava na multidão.
E não nego que eu mesmo me perguntei do cloro algumas vezes quando era pequeno. Tentei, uma vez, se me recordo bem tinha nove anos. Minha mãe correu comigo para o médico quando me encontrou com a garrafa na mão, achando que eu tinha bebido. Mas não, não tinha. Estava apenas passando na pele. Tentando ficar branco.
Eu tive sorte, na verdade, de nascer rico. Preto, mas rico. O dinheiro de meu pai em nada serviu para mudar a cor de minha pele, mas sem dúvidas fez como que eu não tivesse que passar por muitos problemas na vida. A verdade é que sequer consigo começar a imaginar as dificuldades diárias de, além de ser preto, ser pobre.
Mariana, a moça que trabalhava lá em casa quando eu era criança, às vezes me contava sobre o cotidiano dela. Moradora da favela desde criança, a mulher dos cabelos cacheados sempre presos em um rabo-de-cavalo apertado discorria sobre uma realidade que eu só conhecia de ver na televisão. E eu agradecia, todos os dias, por ter tido essa sorte. Por mais que Mariana fosse muito bem paga – coisa que meus pais sempre fizeram questão de que assim fosse, sendo eles conhecedores da realidade da mulher muito mais do que eu jamais serei -, isso não mudava o mundo ao seu redor. Todos os dias ela ainda tinha que sair da minha casa e enfrentar horas de trânsito até a sua, subir o morro passando por crianças, adolescentes segurando fuzis à céu aberto, bocas de fumo e ameaças diárias de tiroteio. Tinha que viver, dia após dia, o medo e a incerteza, sem nunca parar de se preocupar, nem por um segundo, se seus filhos estavam bem.
É claro, esse é o tipo de preocupação que todo pai e mãe tem, mas no caso de Mariana, e de milhares de outras pessoas, a coisa era diferente. Mariana não se preocupava apenas se Renan e Viviane estavam fazendo seu dever de casa ou não. Se preocupava se estavam vivos. Se, na volta da escola, aquela escola de ensino precário na qual estudavam, não tinham desviado do caminho, se perdido na vida para nunca mais voltar. Se preocupava se a roupa que colocara na filha de apenas doze anos era larga o suficiente, se a menina não tinha insistido em usar maquiagem, se havia lembrado de tirar os brincos e bijuterias antes de voltar da escola. Se preocupada se a garota passava despercebida, camuflada na multidão de gente, sem chamar atenção indevida daqueles que controlavam a região. Ouvia histórias e mais histórias de amigas, primas, vizinhas, filhas de conhecidas que foram tomadas, feitas mulher antes da hora, forçadas a uma vida sem futuro, sem esperança, que não se desejava ao pior inimigo.
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Dor da minha alma
Short StoryMatheus convida você a entrar em sua vida e em sua mente. Filho de pais ricos, ele entende com propriedade os privilégios que sempre teve na vida. Mas entende muito bem também o desafio diário que é viver. Em um relato visceral, o racismo e a depres...