Origamis e café

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Os meus olhos cansados lutaram para permanecerem abertos, meus pulmões estavam queimando e minhas mãos lutavam contra toda a água. Contra todas as alternativas, eu consegui, enfrentei o juiz que estava me multando por alta velocidade. Eu não estava em uma perseguição policial, ou salvando uma vida, só estava atrasada para o trabalho. Aliás, sou a nova desempregada do pedaço e bati meu carro num hidrante.

Sorte não era algo que tinha, meu antigo chefe era um babaca e meu antigo namorado? Bernardo, eu simplesmente não aguentava. Você deve estar pensando que eu fui traída, na verdade não - até onde eu sabia - o Bernardo só conseguia ser o cara mais entediante da face da Terra.

Quatro meses de namoro e ele queria viver em uma linda casinha no subúrbio, com cercas e filhos, e claro seu papagaio.
Eu odeio animais de estimação.

É, eu estava afogando.

Afogando na desgraça.

Afogando no tédio.

Afogando nas dívidas.

Queria que algo acontecesse e mudasse minha vida.

Agora.



Acordei perto do almoço, minha cabeça latejava, estava irritada e nem eram duas da tarde. Tomei um banho relaxante e me vesti para comprar algo para comer, a padaria não ficava a três quadras de casa e eles sempre tinham um bom café.

Nada ia me impedir. Andei até a próxima quadra e de repente a neve que caia se tornou mais forte, não sabia que estava tudo tão branco e forte. A padaria ficava não estava tão longe, então simplesmente corri.

A dor veio logo que eu senti meu pé afundando na neve, senti uma pedra batendo no meu tornozelo e senti a torção, andei mais um pouco e forcei a porta, várias pessoas me encaravam sentadas. O lugar estava lotado, parecia que eu não era a única que havia sido pega pela nevasca intensa. Sentei-me na única mesa livre perto da parede, desenrolo o cachecol do meu pescoço e coloquei o casaco de lado, toquei meu pé e constatei que estava doendo, mas não iria morrer.

Uma xícara de café quente foi colocado à minha frente, agradeci o garçom e fiquei olhando a neve cair. As vozes começaram a me perturbar. Eu tinha medo de não conseguir sair desse mormaço que era minha vida, estava tão acostumada a tudo, até ao namoro. Minha sorte não era lá essas coisas, mas agora parecia que nem isso tinha.

O barulho da TV chamou minha atenção. Avisaram que ninguém devia sair de suas casas, a neve iria piorar. Claro, tinha que ser assim, afinal era eu.

Deitei a cabeça na mesa e comecei a mexer no açúcar, eu não percebi quando dormi.

Ao abrir os olhos, um homem de no máximo 40 anos estava sentado à minha frente. Os ombros pareciam cansados, os olhos procuravam por uma leveza.

A noite tinha caído lá fora, levantei a cabeça devagar e notei a baba em cima da mesa e limpei meu rosto. Eu odeio a minha vida.

A rua estava coberta de neve, completamente, era impossível ver a calçada ou o asfalto.

- Essa era a única mesa vazia. – Olhei e era realmente a única. Seu cabelo era preto, seus olhos pareciam duas jabuticabas e ele tinha um papel na mão, ele estava fazendo origami. Eu conhecia a técnica, mas nunca tive vontade de aprender a fazer. Sua pele morena contrastava com o papel branco. – Isso acalma.

- Parece mesmo relaxante.

- O que te trouxe aqui nessa neve?

- Acho que a mesma coisa que todo mundo, a certeza que não ia nevar tanto.

- Eu apenas fui pega de surpresa. - disse enquanto o estendia a mão. - Prazer, Emmy.

- Daniel.

Meu café estava frio e ia pedir outro quando ele me passou seu copo. Olhei com desconfiança, eu não o conhecia, ele podia ser um psicopata. Procurei por qualquer vestígio de veneno, era claro que não daria para ver se fizesse bem seu trabalho. Ouvi sua risada e olhei para ele.

- Minha mulher fez a mesmíssima coisa a primeira vez que dividi um café com ela. – Busquei por qualquer aliança que chamasse atenção, mas não tinha nenhuma.

- Casado? - indaguei bebericando o café que estava delicioso.

Ele retirou de dentro do casaco uma corrente que levava duas alianças de prata, a mais fina tinha alguns riscos, não parecia mal cuidada, apenas que tinha sofrido um dano, a pedra que um dia tinha existido ali não estava mais no local. Seu semblante ficou triste e me senti mal por ter feito qualquer coisa que o lembrasse dela.

- Acidente de carro.

- Sinto muito.

- Tudo bem, já faz algum tempo – diz guardando o colar de volta dentro da blusa.

O silêncio é incômodo a sua alma parecia boa, tinha uma luz que emanava dele e tocava as pessoas a sua volta, mesmo agora depois de falar da falecida esposa dava para ver nos olhos dele um carinho pela humanidade. Fiquei olhando ele montar o origami até sentir uma vontade descomunal de ir ao banheiro, me levantei depressa e bati o dedinho no pé da mesa e lembrei que tinha machucado o meu pé.

Daniel se levantou e veio me amparar, o machucado estava arroxeado e inchado, como não havia notado isso? Ele me sentou no seu lugar e se ajoelhou para massagear o tornozelo. Suas mãos eram quentes contrastando com a frieza da minha pele.

- Há quanto tempo você está com esse machucado?

- Não faz nem algumas horas, não estava doendo tanto até agora.

- Vou procurar um remédio para você.

O remédio desceu queimando minha garganta junto com a água gelada. A dor foi diminuindo conforme os minutos iam se passando, Daniel se sentou ao meu lado e esticou meu pé sobre sua perna.

- Você pode me contar uma história para eu esquecer a dor? - pedi em voz baixa

- Eu tinha dezenove anos quando conheci Alexandra, nós estávamos em um restaurante, o lugar estava praticamente vazio, eu fingi que a conhecia de algum lugar, e eu descobri que ela tinha uma péssima memória, então acreditou. Ficamos conversando por horas, e ela nunca percebeu. – um sorriso aparece em seu rosto bonito, parecia que ele precisava falar sobre isso. – Trocamos telefone, e não nos vimos por meses, até quando ela me ligou e pediu para buscá-la num restaurante, um encontro não tinha dado certo. Eu fui. Aquele foi o primeiro dia que eu dormi em sua casa. Acabamos nos aproximando cada dia mais. Depois do nosso primeiro beijo, eu contei que não a conhecia de verdade e ela me expulsou de casa, fiquei e dormi em frente a porta. Eu já estava completamente apaixonado por ela, Alexandra tinha um jeito de te roubar o ar. Ela riu da minha situação e pediu para entrar, eu fui, eu nunca mais sai, nos casamos um ano depois, fomos felizes por quinze anos e então aconteceu o acidente, e eu a perdi, mas não perdi as memórias, o amor, ou a beleza que foi a ter durante o tempo que tive.

Eu fiquei em silêncio olhando para minhas mãos, esse tipo de amor poderia acabar com todas as dores do mundo.

Ele pegou um papel e me entregou, comecei a repetir seus movimentos enquanto tentávamos montar uma estrela de origami, meu papel era azul e o seu amarelo, era calmante fazer algo assim, depois de uma história como aquela, ele tinha vivido um amor de verdade.

Daniel me sorriu quando olhou minha estrela, a dele estava perfeita.

Não percebi o dia amanhecendo e o sol diminuindo a neve. Quando as pessoas começaram a deixar a padaria, comecei a despertar do transe. Daniel me deu uma caneta e me pediu para colocar meu nome na estrela, escrevi e coloquei meu número, e ele fez o mesmo, trocamos estrelas.

Ele vestiu seu casaco e pediu um café para mim. Senti seu beijo em meu rosto e vi ele se afastar.

Esperança, foi isso que nasceu em mim, de que de alguma maneira, minha vida seria boa.

Quando olhei a estrela na minha mão, encontrei seu número exposto. Recebi uma mensagem e olhei para o meu celular, o número desconhecido me chamou atenção.

“Estrelas dão sorte. Espero que você a tenha.
Daniel.”






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