*Bling
O som do sino acima da porta ecoava por cada canto empoeirado daquele lugar vazio, anunciando a entrada do inesperado freguês.
O movimento da porta levantou uma pequena nuvem de pó e fez uma marca em arco no chão, a poeira subiu até o rosto coberto do visitante. Ele imaginava se a vigilância sanitária fecharia aquele lugar, se ainda existisse uma vigilância sanitária.
Ele entrou na pequena loja. Seus passos leves não faziam barulho, mesmo estando calçado com botas, mas suas pegadas ficavam visíveis no chão, e a cada passo silencioso uma pequena nuvem de poeira sujava as teias das aranhas que dominavam o local.
Caminhou entre as prateleiras, divagando sobre as lembranças de locais assim, mercearias de cidades pequenas com pessoas entre os corredores todas comprando seus mantimentos, uns pesquisando e outros reclamando do preço sem saber como eram abençoados por poderem comprar coisas boas. Mas no momento, no meio de todo aquele pó, ratos que corriam para se esconder e aranhas que teciam calmamente suas teias, encontrar algo comestível por si só seria a mais pura felicidade.
Uma lata de óleo amassada, um saco de sal furado que derramou e fez um pequeno monte no chão, um punhado de arroz amarelado num saquinho fracamente amarrado, ervilha e milho enlatados e escondido embaixo de uma prateleira, um tesouro, chocolate, uma pequena e mísera barra que deveria ter sido pisada e chutada no corre-corre da loucura - Obrigado senhor! - muitos matariam por aquilo, literalmente.
Ele sentou e numa banqueta no que poderia ser a padaria. Sem nem olhar a validade, começou a desembrulhar o pequeno pedaço de tesouro, agradecendo aos ratos por não tocarem nele e nunca mais tocariam. Sentiu a textura, começou a sentir o cheiro daqueles 150g de puro prazer em forma de açúcar, gorduras e outras bobagens que antes incomodariam mulheres e obesos. Ficou uns minutos olhando aquela barrinha solitária, pensando em como era idiota demorar tanto para comer aquilo. Mordiscou, sentiu aquela lasca tocar-lhe a língua e começar a derreter ativando suas papilas gustativas, era quase um êxtase, uma catarse açucarada. Por fim decidiu fechar os olhos, encenou uma conversa naquela mesa e começou a comer seu doce como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
Conversava com uma atendente imaginária a quem chamou Linda Carter, uma estudante de administração que trabalhava meio período para pagar a faculdade depois de brigar com os pais, ao seu lado tinha o Sr. Evans, um homem de meia idade de cabelos brancos que tentava em vão galanteios para Linda, na esperança de acontecer algo entre eles. Tinha o Sr. e Sra. Johnson, que vinham toda manhã comprar pão, e seu filho Bob apaixonado por Linda desde o pré-primario, as pessoas comuns que iam e vinham, clientes, donos de lojas, vagabundos atrás de um gole grátis ou uma cantada a toa, todos eles entravam naquela mercearia, vivendo suas vidas em paz...
O chocolate acabou, e com ele a ilusão, o homem abriu os olhos e deu de cara um lugar poeirento, que fazia nascer nuvens de poeira a cada passo silencioso seu, que escondia ratos famintos e aranhas jeitosas, que não tinha mais vida e só tinha isso a oferecer. Como ele ficou feliz por poder se iludir.
Ele olhou sua sacola antes de colocar na mochila, fez pequenos cálculos mentais, enfiou tudo na mochila e fechou. Chegou ao balcão, pegou um punhado de notas velhas e amassadas, algumas moedas contadas na hora, depositou em cima do balcão para um imaginário Sr. Peter Clark, proprietário do local, agradeceu e parabenizou o atendimento, despediu-se de Linda Carter e desejo-lhe sorte.
Saiu pela porta, fechou, fez ecoar o som do sino por aquele lugar antes sem vida, mas que agora estava cheio e movimentado, mesmo que numa peça teatral, faziam companhia para os ratos e aranhas que eram seus espectadores. O som dos sinos anunciou a saída do último cliente, que levou suas mercadorias, e deixou no balcão $14.75, ele deixou no local uma lágrima e um lugar cheio de lembranças.
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Noah
General FictionQuase todos haviam perecido, os poucos que sobraram tem que lutar diariamente para não ter o mesmo destino. Como lutar contra a fome que está cada vez mais proxima com a excasses de recursos? Como não morrer de sede quando é tão perigoso caminhar lá...