A Juíza

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Passar tanto tempo aqui te faz esquecer da bagunça lá fora. Ombros e barrigas no transporte até o trabalho, costas e mãos de volta a casa. Ter um carro é artigo de luxo, ou suicídio. Somando todos esses fatores e outros milhares a mais, é mais favorável e confortável vender sua casa, alugar um carro e dormir no estacionamento, assim como eu, apenas porque qualquer um sem identificação é alvejado a menos de vinte metros de qualquer parede externa deste estabelecimento. Sendo assim, o muro é apenas uma larga linha vermelha de borda amarela pintada ao chão, enegrecida pela decomposição, onde nem os serviços de limpeza tem permissão de se aproximar, serviço que cabe apenas a chuva. Não podemos questionar suas crenças, nem suas opiniões falhas, mas podemos alvejá-los após a linha.
O som do salto-alto ecoa perpetuamente, martelando minha cabeça. É impossível se acostumar a caminhar neste corredor quadriculado que ondula sobre a costa, paredes lisas de um concreto cinza chumbo e piso de cascalho fundido, mas a fraca iluminação levemente azulada do rodateto fluorescente e o ar fresco torna a longa caminhada mais agradável. Trago frios e os como enquanto caminho, apenas para não ter que caminhar o dobro até o refeitório. Sempre me distraio e perco a numeração de minha sala, tendo que voltar na média de cinco a seis. Entro e me sento.

Está ventando, mas não quero fechar as janelas, apenas as persianas, parcialmente. É preciso que sintam para serem verdadeiros, mas a vista para o mar os distrai. A tela me atrapalha, essa transparência me faz pensar que quem projeta esses equipamentos nunca irá usá-los, desesperados para serem chamativos em suas criações, mas pouco práticos. Posso o ver através da tela, em toda sua decadência de olhares perdidos e ruminações de gengivas, mas seria mais simples pôr a tela ao lado, e esquecer essa ideia de transparência.
Ele ainda está em pé, incomodado com o leve vento que chacoalha as persianas. A insuportável tela sinaliza em termos técnicos que ele quer chorar. Mas e se eu quiser que ele chore?! E se ele precisar?! Como posso conhece-los sem os expor?! Tendo que me preocupar com sua integridade a ponto de qualquer palavra mal interpretada possa ser um crime, mas deixá-lo nu em uma sala fria não é crime.
Ele não está bem, mas a tela agora indica que ele está normal. Não sei mais o que pode ser considerado normal, quero poder julgar por si só, julgar por ele. Não quero uma tela fingindo ser parte de mim ou parte de uma realidade forjada, quero enxergar apenas o que é real.
Sua inquietude me incomoda, olhando para fora como se pudesse ver através das persianas. Devo começar:

Samanta: - Sente-se...

Desajeitado, devagar ele obedece. A tela entre nós sinaliza que ele está em condições para o exame:

Samanta: - Esse é um dos testes mais complicados, pois não é necessário que você entenda. Então não se deixe abalar por esse ser o teste definitivo e com maior taxa de rejeição.

A tela sinaliza em termos técnicos que ele não se abalou, algo que já era notável. Sarcasmo já deve ser rotina a ele ou simplesmente não se importa, já está condicionado a rejeição.

Samanta: - Neste teste você responde minhas perguntas de forma clara e objetiva, em poucas palavras, mas sem dizer nada, nem expressar de qualquer forma. Basta pensar na resposta.

Ele permanece imóvel, me encarando. Aparenta estar cansado e desinteressado, mas a tela sinaliza o contrário. Sendo assim:

Samanta: - Qual é o seu nome?

Ele toma um leve e lento fôlego:

Samanta: - ... Não!

E mais lentamente ainda seu fôlego se esvai. Só então a tela se torna amigável, eu vejo o que ele vê, ouço o que ele ouve, com toda a interferência do som do vento nas persianas, mas é assim que posso melhor conhecê-lo:

Samanta: - Idade?... Cor favorita?... Comida favorita?... Música favorita?... Som favorito?...

Ele hesita em distinguir música de som, mas logo sua mente se confunde em pensamentos impróprios, posso vê-los reproduzidos na tela, ouvi-los, e sou eu quem está na tela. O fato dele estar pensando em mim desta forma não me incomoda, já é rotina com os entrevistados, indiferente de idade ou até mesmo gênero. Eu tento trazer conforto em meio a essa invasão, e geralmente é assim que me associam. Esse é um dos motivos de expô-los fisicamente, avaliar que direção sua mente segue e até que ponto. Mas o que me incomoda é suas reações físicas, assim como incomoda a ele. Certas coisas deveriam se manifestar apenas em mente. Está fragilizado, exposto e lutando para se reprimir, e pensar no quão fria está a sala faz isso parecer doentio. Talvez eu deva ser mais direta:

Samanta: - O que te motiva?...

Estranhamente, sua confusão e indecência se torna inocente ao mesmo tempo que indiferente. Nunca tinha sido tão fácil expor o íntimo de alguém, quase como se quisesse se libertar. Posso ser ainda mais direta:

Samanta: - Porque uma eternidade?... Você teme a morte?...

Não tive êxito, apenas respostas banais. Mas ainda assim ele permanece exposto, esperando uma questão mais relevante:

Samanta: - Porque outro lugar?...

A tela entre nós se encerra em um vermelho hostil, sinalizando em termos técnicos que ele não está mais em condições de prosseguir. Mas fisicamente está normal, o mesmo normal que a tela julgava anteriormente, como se isso não fosse uma surpresa a si, condicionado a prosseguir. Está acabado, mas o sinal se torna cristalino indicando uma compatibilidade. Algo improvável de se ocorrer em um teste interrompido. Individualmente ele fora recusado, mas há uma compatibilidade.
Eu me lembro dela. Já se fazem meses. Tem menos de um quinto de sua idade, mas afinal isso não fará diferença daqui alguns séculos. Fora um dos exames mais simples até então, mas ainda assim pouco motivador justamente por ser simples demais, como se faltasse conteúdo a ser analisado.

Ele vê a resposta da tela, que agora o indica estar em um estado de extrema ilusão e fascínio. Ele pode ver, pois é ele quem decide, eu apenas julgo se é possível, mas isso acaba sendo tão mais injusto. Eu reluto a confiar em uma tela, mas já está decidido, é isso que ele quer e em silêncio implora.

E surpreendentemente me pego em dúvida. Queria tanto não depender de uma tela...

Éter de LeviOnde histórias criam vida. Descubra agora