Era uma manhã nublada, sem muitas surpresas. Pela sua tabela improvisada, aquela semana conferia com as previsões. Sentia-se muito bem, não somente pelo delicioso copo de achocolatado que preparara, mas sim por ser seu aniversário. Não é todo dia que alguém faz dezesseis anos. Bem... para Thiago esses dezesseis eram passados pela terceira vez, embora se sentisse muito melhor lá pelos dezenove ou vinte.
Tomou banho e se arrumou com praticamente o mesmo sorriso. Apanhou todos os materiais e o trabalho de geografia, organizando todos na mochila com a mesma destreza que havia arrumado a cama e o resto do quarto alugado. Adorava ele, por acaso. Havia três anos que morava ali, sem dúvidas a melhor casa que já se hospedou, sendo tratado como parte da família.
Com ele vivia Dona Leila, uma cinquentona de cabelos loiros pintados e de sorriso cínico, não por sua culpa, claro, ela sempre culpava a genética quando a chamavam de "falsa oxigenada". Mulher forte, pra falar a verdade, com o coração do tamanho do mundo, mas amargurada depois de viúva. Tinha uma filha que vivia no quarto roxo, não era de muitas palavras, só o que ele sabia era que a garota estudava em sua escola, mas morria de vergonha de falar que o palhaço da turma morava em sua casa. Thiago a chamava em seus pensamentos de Moranga, por quase todas as noites correr para o quarto da mãe perguntar se ela havia comprado seus sagrados morangos vermelhos. E então caminhava para a cozinha a preparar uma generosa tigela cheia deles, coberto por açúcar.
Saiu então de casa e seguiu caminho ao colégio, que ficava a cerca de quatro quadras dali, mas gostava de estender a viagem por mais uma rua, afim de dar uma boa cheirada nas flores azuladas de uma barraquinha ali perto... Tudo pretexto para cumprimentar a estagiária que sempre lhe retribuía com um sorriso malicioso e uma piscada de canto de olho.
- Olá, sumido. Resolveu não aparecer a semana toda... Achei que havia me esquecido. – Alfinetou a garota, prestando atenção para o chefe não a ouvir.
- Semana corrida, sabe como é. – Disse em tom galanteador, levantando o trabalho em cartolina e devolvendo o sorriso e a piscadela.
Virou-se e dobrou a esquina, mesmo com a garota o observando a cada passo.
*
"Dados os seguintes dilemas históricos, é claro aos dois partidos que..." continuava o professor de história. A atenção da turma era tão nítida quanto uma gota num oceano. Nas primeiras fileiras, onde se acomodavam os alunos mais estudiosos, estava acontecendo uma pequena discussão sobre as questões de física da aula anterior. No canto esquerdo da sala, haviam pelo menos oito cabeças abaixadas em sono profundo, que impressionantemente não emitiam nenhum ronco que pudesse lhes denunciar. Já no fundo da classe se encontrava algumas figuras emblemáticas da turma. Maco, o atleta valentão da sala, de cabelos raspados num modelo militar. Era alto como uma porta, e tinha os braços tão grossos quanto as pernas. Era acompanhado do fiel escudeiro Duda, que tinha a metade do seu tamanho e o dobro do seu peso, mesmo ambos terem seus vinte anos. Tinham como hobby afundar a cabeça de crianças na lama do pátio interno da escola, colocar fogo no banheiro feminino e esporadicamente furtar alguns itens da sala de troféus. Junto deles, balburdiando com piadas, o aluno de notas exemplares da sala caçoava do jeitão desengonçado do professor.
"Thiago, por favor... Modos, rapaz" chamou a atenção dele. Particularmente, o garoto adorava ter a atenção para si, achava encantadores os olhares recebidos por todos da classe. Seja na hora de explicar com detalhes afiados os temas e assuntos discutidos nas aulas, ou quando se mostrava experiente na arte de jogar bolinhas de papel na xícara de café do professor enquanto ele escrevia no quadro. Mas era seu aniversário, o melhor dia do ano. Mal via a hora de chegar a terceira aula para enfim cantarem seus votos de longa vida em alto e bom som.
Tocou o sinal. Os amigos se entreolharam. Houve aquele suspiro coletivo, com todo um universo de energia armazenada nas mãos, e quando ia-se bater a primeira nota de uma curta e batida música popular, a diretora entra na sala. Pasmo, Thiago frustrou-se em menos de um milésimo de segundo, amarrou a cara e pôs-se a ouvir o que a bendita diretora queria falar.
Em meio as palavras de Dona Laura, alertando sobre os cuidados com o banheiro da escola, entrou uma garota diferente na sala, apoiando-se no quadro negro e fuzilando com os olhos amendoados os alunos da turma, enquanto estruturava em seus lábios uma bolha de chiclete. Cabelos curtos em um tom azulado nas pontas. Blusa branca, calça jeans azul rasgado, com um casaco xadrez vermelho amarrado à cintura. E claro, um clássico All Star que um dia fora preto. Já não se prestava mais atenção no que a diretora dizia, apenas no jeito despretensioso da garota. "Ah sim, quase ia me esquecendo. Crianças, sua nova colega de turma. Lara. Seja bem-vinda, querida. Sente-se e aproveite o restante das aulas. Mais tarde, se possível, gostaria que um voluntário pudesse emprestar a ela um caderno para que se inteire das matérias e tudo mais. Acredito ser só isso. Boa aula a todos. Professora, continue por favor." Finalizou a diretora, saindo e dando espaço a professora de Inglês.
Lara, como já havia sido introduzida superficialmente à turma, sentiu-se na obrigação de se recolher a uma carteira, e escolheu a dedo uma no fundo da sala, o que na visão da turma já mostrava pontos de sua personalidade. Caminhou entre as fileiras, instaurando um silêncio promissor nos demais. Chegou até seu destino e ajeitou a mochila remendada bege ao seu lado, sentou-se e tirou da mochila um livro de bolso de capa velha, que já guardava entreaberto e quase no fim.
A turma não parava de fitar a garota de canto de olho. E ela, em resposta direta, soltava suspiros de ódio esporádicos. Mas o que intrigava Thiago era que na mão direita dela, se encontrava um item que o jovem conhecia muito bem. Era um dos irmãos de sua ampulheta. Ela tinha amarrado ao pulso um cordão preto com pingente pequeno de cronômetro de centro branco, ponteiros finos e envolto de um metal negro levemente esverdeado.
*Passou a aula, recreio e o restante do tempo de estudo. Nada tirou a garota mal-humorada de sua mente. Thiago sentia como se algo estivesse à espreita o observando a cada passo, e no caminho de casa, lembrou da encomenda que o aguardava.
Eram quase três da tarde quando o maldito Zhalos apareceu ao horizonte, caminhando em direção ao garoto. Era um homem alto, muito forte, pele morena e cabeça raspada. Não era de muitas palavras, mas também não costumava atrasar. Declamava em voz grossa ao mesmo tempo que completava as lacunas de uma via presa a uma prancheta. "Encomenda referente ao mês... seis. Ano... dezoito. Destinatário... Nome e assinatura aqui, por favor." – falava sem tirar os olhos da folha. "Dhaa...ro" e fez um rabisco sucinto ao lado. "Nome humano nesta linha...". Continuou. "Thiago...Avern. Prontinho." E recebeu a pequena caixa que lhe aguardava. Abriu e conferiu se tudo estava correto. "Mil e oitocentos... mil e novecentos... certinho, tudo conferido. Faltou alguma assinatura, marca de sangue ou amostra de pena?" E em tom seco o homem respondeu "Negativo". Thiago então despediu-se e soltou carente "Sabe, hoje é meu aniversário. Parabéns pra mim, ha-há." Mas sem resposta de nem um musculo na face do entregador. Tornou a seguir seu caminho, arrasado, enquanto Zhalos ajeitava um segundo pacote em mãos, o que chamou a atenção do garoto.
Descendo o caminho e cantarolando depressivamente sua música de parabéns, bateu os olhos ao outro lado da avenida. Via caminhando o que seria seu motivo de mais noites de insônia. Dirigia-se ao lugar que a pouco Thiago havia saído com a caixa. Olhou bem, para não haver dúvidas... e dúvidas foram o que mais surgiram então. Era Lara.
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Além dos Cinco
FantasiaThiago Avern, mais conhecido nos céus como Dhaaro, divide seu tempo na terra entre a vida cotidiana de um garoto adolescente e seu real propósito, ser um anjo anunciador da morte. Mesmo levando sua função tranquilamente bem, o jovem sente um desequi...