Ao som de Maroon 5, Marco sentia-se agitado por não estar combinando com a acústica deliciosa de She Will Be Loved que tanto estimava. Sua vibe provavelmente era um MC Livinho, mas não arriscou a tirar os dedos do volante para mudar de música – não via necessidade de mexer no celular enquanto dirigia e ainda mais com a playlist no aleatório: era quase uma lei não alterar as músicas que surgiam ao acaso. Temere musicam, ele meio que recitava antes de apertar o botão.
Estava descobrindo que até poderia gostar de viajar sozinho, pois sentia-se recheado de pensamentos que naturalmente poderiam ser evitados ao deitar-se na cama e visualizar seus barquinhos ao lado pegando poeira.
Isso foi o que inocentemente pensou nas primeiras horas de viagem. Depois passou a definitivamente jurar que nunca mais viajaria sozinho, ou simplesmente nunca mais viajaria sozinho de carro a uma distância tão grande, como esses 1000km e pouco de estrada.
Em poucos minutos conseguiria parar em uma cidade qualquer, falaria com outros seres humanos e acharia um lugar para passar a madrugada — esquematizou consigo mesmo.
Decidiu parar em Pato Branco ou como prefiriu chamar alguns segundos depois, anas alba. Lembrou-se de já ter ouvido falar desse lugar em Toma Lá da Cá e em Sai de Baixo — Nunca imaginei sair da minha cidade e vir parar por esses cantos — disse gargalhando e sentindo-se sozinho, literalmente.
Entrou na primeira pensão que encontrou e surpreendeu-se por só conseguir tratar as negociações para passar a noite ali, já que no carro pensou ter ânimo para ficar jogando conversa fora com qualquer um.
Pegou o quarto de número 23 (o seu número favorito) e ficou feliz e ao mesmo tempo nostálgico pelo ambiente ser rústico — Só queria estar jogando The Sims, construindo e mobiliando um novo barco — disse em voz alta e de forma tristonha. Viajar sozinho havia despertado um instinto de falar sozinho, que não escaparia dele de forma tão rápida.
Tomou uma ducha, deitou-se na cama, colocou sua playlist do Spotify em que só tocava classical Music e fechou os olhos, sabendo que logo no raiar do sol pegaria a estrada de novo e chegaria na tão aguardada república.
﹌
A república era bacana. Por bacana, Marco entendia como sofisticada e tranquila. “É incrível como um lugar pode ser tão diferente do que habita lá fora. Rio Claro era uma loucura no trânsito mesmo sendo tão pequena e a república era... quiescis.”
Assim que pisou naquele clássico tapetinho ralo de boas vindas, sentiu-se em um refúgio. Enquanto as ruas lhe traziam aos ouvidos buzinas, passos, gritos, risadas, músicas, derrapagens, motores... A república lhe trazia o som da voz do Renato Russo. Ele apreciava boa musica tanto quanto a melodia das ondas do mar, e perdeu-se tentando identificar qual música estava tocando.
Marco foi interrompido ao tilintar das chaves tocando no chão. Não havia tapetes ou sequer carpete no que ele pensou ser a sala de estar, e concluiu que “eles” talvez fossem higiênicos, já que tapetes eram como pequenas ilhas de férias para ácaros e partículas de poeira. Detestava tapetes. Mas detestava mais ainda suas mãos de alface.
Ao escutar o barulho de algo caindo no chão, Ruth foi checar. Nesse horário da noite, dificilmente tinha alguém na república.
Atravessou os cômodos com pressa e deparou-se com um estranho muito alto. “Devia ter pego um facão na cozinha, pois nem sempre estranhos invadiam a república e seria bom assusta-lo”, ela pensou.
Sabendo que sua unica arma seria a tão famosa abordagem Ruthiniana, não conseguiu conter sua impulsividade tão familiar:
— Pois não, eu achava que ladrões entravam sem realizar barulho algum — disse uma voz feminina autoritária, que tinha certeza absoluta de que demonstrando poder, receberia respeito.
Marco de súbito congelou. Foi avisado de que moraria com quatro pessoas, mas nem sequer havia projetado imaginar como tais encontros desenrolariam. E que muito menos, se depararia com uma garota dessas.
—Sou-Marco-o-novo-estudante-desculpa-entrar-sem-bater-ganhei-chaves-do-monitor-pelo-correio — disse quase que cuspindo todas as palavras do fundo de sua alma.
A socialização do garoto alto nunca atingiu um nível avançado entre os jovens, relacionava-se melhor com velhinhas e velhinhos que simplesmente só sabiam falar do tempo, do preço alto das mercadorias, do passado ou do oceano, é claro.
E alem disso, detestava ser pego de surpresa pelas pessoas.
— Estudante de quê? Eu nem sequer fui informada de um novo residente — disse Ruth com uma das sobrancelhas arqueadas e ainda com a postura de uma inquisitora do século XIII.
Marco não era tonto, mas sabia que já havia perdido a confiança dessa linda jovem, que devia ter uns 24 anos, era loira (mas certamente não era natural, visto que madeixas mais escuras desabrochavam de seu coro cabeludo). E claro, também não era natural que fosse recebe-lo com flores.
— Estudante de Geografia. Vou entrar esse ano, procurei por uma república próxima da universidade com alguma vaga e tcharam: apareceu essa residência. Na qual moram...
Ruth desligou um pouco sua mente. A sensação de alarme já havia passado e percebeu que esse garoto a sua frente era só mais um bocó e talvez tinha o assustado.
Aparentemente não era um daqueles machos escrotos que circulam por aí. Arrependeu-se apenas de não ter recebido Lucas de tal forma. “A vida seria mais bonita agora”, refletiu tristemente.
Interrompeu Marco que não parava de tagarelar sobre o lugar onde ela morava há dois anos e disse com mais tranquilidade na voz:
— Eu não me lembro de ter publicado nenhum anúncio dizendo que aqui há vaga — disse mesmo sabendo que haveria uma vaga devido a cama de solteiro no quarto dos meninos.
“Mas ninguém havia mencionado adicionar uma nova pessoa, apesar do aluguel ter aumentado e todos terem reclamado”, pensou ela.
Marco encontrou-se confuso, mas sabia que esse era o lugar certo. Resolveu pegar o celular e mostrar o anúncio, mas isso iria demorar.
— Eu devo ter algum print do anúncio no meu celular. Vai demorar, mas posso te provar que postaram algo sim.
— Eu até diria que tenho todo o tempo do mundo, mas whatever, isso deve ser coisa do Luc...
— É ele mesmo. Ele quem publicou, o adicionei no Facebook e tratamos a mudança desde o fim do ano passado — falou Marco a interrompendo, mas logo se arrependeu.
“Ela tem cara de quem nunca deve ser interrompida. Mas que garota mesquinha!”, irritou-se mentalmente.
Ruth devolveu um olhar ameaçador para o garoto do qual já não lembrava mais o nome (ou talvez nem tenha prestado atenção quando ele disse).
Detestava ser interrompida, mas estava mais preocupada pelo fato de Lucas continuar agindo por suas costas.
Ruth sabia que não seria a primeira e nem última vez que Lucas faria algo sem consulta-la, mesmo ciente de que quem criou a república tinha sido ela.
E mesmo assim, não conseguia ligar ou mandar uma simples mensagem de texto para o seu ex sogro, que num instante seria capaz de destruir a vida do menino que a destruía todos os dias, de maneiras e formas cada vez mais criativas.
Lucas realmente a deixava louca.
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As Ondas Me Levam A Você.
RomanceMarco, um amante solitário do oceano e teimoso em reviver uma língua morta, de repente se vê em outra cidade, longe de tudo que ama e prestes a redescobrir quem é, diante de novas quatro pessoas que vão mudar sua até então famigerada solidão. Uma de...