Capítulo I

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Escorre tanto azul dos meus olhos que o amarelo das minhas mãos é engolido

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Escorre tanto azul dos meus olhos que o amarelo das minhas mãos é engolido. A vista em si é bela,  mas a minha vista dói e pulsa. Viva. Capturo como vejo:

Anéis vibrantes de luz rodeiam a lua e as estrelas. O céu água, em nuances de azul, propaga ondas como se a lua houvesse sido arremessada em sua superfície, tal qual uma pedra em um lago, e o garoto que a lançou agora arrastasse o dedo por sobre as água fazendo redemoinhos. Em um turbulento fluxo, as ondas e espirais seguem caóticos em tons de azul cada vez mais claros conforme a manhã chega. Os ciprestes robustos e longilíneos se erguem ao céu dançando, suas folhas em movimento sobem em chamas verdejantes até a copa.

Isso é tudo que há para ver através das grades da janela do quarto, mas não é tudo que eu consigo ver. Consigo ver também um pequeno vilarejo onde logo o sino da igreja tocará anunciando a vinda de um novo dia e todos se juntarão para a liturgia matinal. Lúcido, eu sonho minha pintura e então pinto o meu sonho. Ou ao menos o esboço por não ter permissão de pintar nesse quarto. Mas poderei por em tela a óleo quando for ao meu ateliê, um outro espaço onde guardo meus materiais de pintura e obras já prontas.

Ao lado da minha cama, a escrivaninha está coberta de folhas sobre a fraca luz das velas que se desfizeram em lágrimas a noite inteira. Acabo com o tormento delas soprando-as, pois já está tudo claro, de qualquer forma. As minhas mãos estão negras de carvão. Eu escrevi inúmeros pensamentos que a noite, agora já feita manhã, me trouxe . E essa foi uma exuberante noite estrelada. As noites sempre me pareceram muito mais vivas que os dias, talvez por passar mais tempo com elas, e sempre me pareceram eternas também. Mas confesso que sinto uma felicidade imensa de saber a cada dia que o sol vai raiar outra vez. E durante a escuridão pós crepúsculo são as estrelas que me dão esperança de um amanhecer

Limpo as mãos em minha calça surrada de mesma cor que o carvão e ajunto um amontoado dos meus escritos, mas separo as páginas direcionadas a meu irmão. Não precisarei enviá-las, pois poderei entregar pessoalmente amanhã e assim poderei ler para ele, eu mesmo. Eu sei que eu poderia contar tudo numa conversa informal, mas escrever me trás paz e gera memórias pra além do que eu penso. E como as vezes não consigo revisitar as coisas como elas eram dentro da minha cabeça, é bom registrar de alguma forma.

Theo é muito mais que meu irmão, ele é o meu melhor amigo, meu suporte. Ele entendeu quando eu quis me internar aqui em Saint-Paul afim de me recuperar e entendeu também que agora quero partir, após um ano aqui. Não me acostumei a esse lugar e nem vou precisar. Se é que algum dia já pertenci a qualquer canto dessa terra. Mas amanhã à tarde estarei na estrada a caminho da casa de Theo.

O meu tempo aqui no hospício foi o mais expressivo da minha vida até agora, tenho que admitir. E não me parece nada contraditório que ao mesmo tempo esteja sendo o pior momento dela também. Sentimentos fortes, sejam bons ou ruins tem esse poder de gerar coisas belas. Mas eu sinto que, apesar de toda dor se tornando virtude, não posso permanecer muito mais. Não aguentaria.

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