Prometeu

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Foi ela a primeira a acordar, ao seu lado ele ainda roncava. Já era quase de manhã quando tinham finalmente conseguido dormir. Levantando a manta com cuidado para não descobri-lo, ela ajoelhou-se, engatinhou até o zíper, abriu apenas o suficiente para enfiar a cara para fora. O ar gelado e fresco da manhã contrastava com o ar quente e viciado dentro da barraca e era bem-vindo em seus pulmões e ela inspirou com força o máximo que pôde.

A estaca de um dos lados da barraca tinha soltado com a tempestade que castigou a montanha a noite inteira, a lona pendia naquele pedaço. Raios, trovões e o som de galhos e troncos se partindo os mantiveram acordados quase até o nascer do sol, isolados, ao menos um dia distantes da cidade mais próxima, sem comunicação. Qualquer acidente e não haveria quem ali fosse procurar por eles, seriam notícia algum dia se um outro aventureiro topasse por acaso com seus esqueletos.

Do lado de fora o sol agora brilhava e o vento feroz da noite não era mais que uma brisa. A paisagem, no entanto, em nada se comparava à da véspera: o chão era só lama e por todo lado se viam árvores tombadas ao chão. Ela vestiu seu casaco, calçou botas e saiu para olhar. A trilha por onde tinham vindo não existia mais, deslizou montanha abaixo. A trilha que tinham planejado seguir não existia tampouco, um tronco a bloqueava completamente. Apesar da experiência que ambos tinham - só nesse pedaço do Cáucaso, essa era a terceira expedição que faziam - nunca antes haviam enfrentado tão forte tempestade. Pra quê meteorologia? A chuva os pegou completamente de surpresa, não havia nada na previsão e a época nem mesmo é dada a esse tipo de fenômeno, daí por quê a escolheram para escalar essa montanha.

Ela ouve um som vindo da barraca e se vira para ver a cara do marido, olheiras profundas e uma barba de três dias emergindo através do zíper. Também ele calça suas botas, mas dispensa o casaco e sai para olhar a destruição.

- Vamos ter que voltar, mas vamos ter que achar outra rota, ele disse.

- Não, eu não quero voltar, eu quero seguir, quero ir até o topo...

- Mas com a chuva de ontem o caminho vai estar perigoso, sem contar que a trilha está bloqueada, nem sabemos se conseguiremos achar um caminho alternativo. Mesmo para voltar já não vai ser a coisa mais fácil do mundo!

- Mesmo assim, a gente só tem a chance de fazer isso uma vez por ano, eu não quero estragar nossa viagem por causa de uma chuva!

- Você não percebe? Nós já estamos ficando velhos! Não dá mais pra ficarmos nos arriscando assim!

- É você que não percebe! Nós já estamos ficando velhos, e é por isso mesmo que eu não quero deixar de subir até o topo! Sabe lá como vamos estar ano que vem? Sabe lá se vamos ter força? Pode ser nossa última chance e eu não vou perdê-la!

- Mas...

- Eu vou. Vou arrumar minhas coisas, comer e prosseguir. Se você quiser, volta e me espera na cidade. A gente se encontra no hotel quando eu voltar daqui a uns dois ou três dias.

- Você está doida? Olha a lama, olha as árvores caídas!

- Não importa, eu vou. A gente se vê na cidade.

- Eu sigo com você. Não quero passar dois dias sem dormir preocupado se você está viva.

Não foram capazes de acender o fogareiro, tomaram apenas água dos cantis e comeram uma parte da ração que traziam consigo. Arrumaram tudo como puderam, secaram tudo como puderam, enfiaram nas mochilas, consultaram o GPS e decidiram tentar fazer um caminho à direita da trilha original, esperando conseguir não desviar muito da rota. Com o desvio, calculavam adicionar mais ou menos meio dia a mais à expedição e seguiram com dificuldade pelo meio da vegetação.

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