Nos momentos mais difíceis, deveríamos sorrir e olhar para o trecho mais profundo dos olhos do inimigo — para provar que sua presença não seria incômoda, tampouco suficiente. Assim você venceria, por mais que na batalha final, a derrota viesse ao encontro de seu peito.
Este homem não poderia me julgar através de suas falsas crenças, nem supor o que eu deveria sentir ou a forma que eu deveria agir.
O tamanho de sua fé é você quem determina.
Eu estava determinando a minha.
— Ah, doce Ariali. Você tem traços iguais aos de sua mãe. — Ele percorre a unha afiada em minha bochecha, fazendo-a sangrar. — Exceto pelos olhos frios que herdou de seu maldito pai.
O meu sorriso frouxo não mostrava tanto do que eu gostaria de revelar, mas neste minuto, era tudo o que eu precisava para não sucumbir. Ele não sabia com quem estava lidando.
— Não se pode ter tudo, como pode ver. — A gargalhada quase silenciosa que emito, é o bastante para que ele se altere mais.
— Maldita. — O tapa me acerta em cheio, em alto e bom som. O rubor em minhas bochechas não se dá pela insegurança, mas pela ardência que a agressão causa. Mantenho a cabeça ereta, por mais que eu queira me encolher em qualquer canto e fugir de todas as coisas que sempre me alcançam. — Não temos o que queremos mais, mas como bonificação, você também não terá nenhum privilégio. Só se cai do céu uma vez.
— Félix, deixe assim. Vamos embora. — O vestido esvoaçante da menina que o puxa me chama a atenção. Os últimos lançamentos de moda não me importavam, mas de alguma forma, eu reconhecia aquele traje de algum lugar. Se não existissem mais dezenas daquela peça em alguma vitrine, eu poderia dizer que conhecia aquela garota.
O Clube P & A nunca esteve tão silencioso quanto agora estava. Vincy não aparecia em meu campo de vista, tampouco Lana e Melany. Eu poderia gritar, mas quantos desses eram parceiros de Félix? Este bar possivelmente estaria repleto de anjos, desde os integrantes da banda até os seguranças. Era isto, ou as pessoas simplesmente preferiam não se misturar e arrumar confusões que não eram de seu interesse.
— Não, Cice. — Félix resmunga, afastando a garota. — Esperamos muito tempo por isso. Se vamos para o inferno, iremos carregá-la conosco.
Reviro meus olhos, quase bocejando.
— De novo essa conversa sobre o inferno? — Arrasto a mão na testa. — Satanás já deve estar cansado de ouvir o meu nome.
Ele hesita, tentando entender.
— Você pensa que estamos brincando? — Balanço minha cabeça, amaldiçoando minha boca grande. O sinal que ele faz é o bastante para que dois anjos me segurem pelos braços. — Sua mãe não poderá limpar mais esta sujeira, só por ser a predileta. Ela já teve o bastante! Se te asseguraram que irá para o céu, está muito enganada.
Parte de mim não podia acreditar que Félix estava falando a sério, ao afirmar que caso eu falecesse, haveriam chances de ir para o céu se minha mãe interferisse. Em parte, eu ainda era um demônio — e demônios não conheciam o paraíso. Anabelle não poderia fazer nada a respeito.
Cice olha desconfiada uma última vez, antes de me dar às costas.
— Eu não sei nada sobre isso. — Respondo, sem me importar com a fúria que continua a ser despejada sobre mim. É tudo tão confuso. De repente, todos me culpam por algo que não fiz, sendo necessário entender um erro do passado, pra poder escapar das garras dos vingadores do presente.
Sinto quando meu rosto é arrastado no concreto. Quero uivar pela dor, mas este seria um prêmio tão ansiado, que eu não me permito a conceder.
— Deixe-me clarear as coisas para você. — Seus olhos são ardentes, quase flamejantes. — Havia a paz, doce e integral. Nós estávamos em segurança, mas tudo mudou depois da visita de seu pai. Os amigos dele não foram mais agradáveis, invadindo a nossa zona de conforto, destruindo nosso lar. Não estávamos acostumados com os tormentos. O paraíso havia se tornado o inferno que eles queriam que vivêssemos. Fomos expulsos de lá, pois os deuses não estavam suportando novas confusões. Queriam eliminar os anjos que faziam protestos. — Félix complementa. — E agora não podemos mais voltar.
