O Caderno Preto

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Só parei de correr quando chegara ao meu esconderijo de pequena.

Aos meus seis anos, após o primeiro dia de aulas, escondi-me debaixo de um túnel vazio e permaneci lá durante horas. Os meus pais procuraram-me, mas nunca me encontraram. Só voltei a casa quando senti fome e sono.
Sempre que chegava da escola, caminhava até ao túnel e escrevia o meu dia no meu diário. Ficava lá durante meia hora, pelo menos (para os meus pais não desconfiarem) e depois do meu desabafo transcrito a palavras, guardava aquele caderno preto dentro de um buraco no topo da parede do túnel vazio e tapava-o com um tijolo da mesma cor e tamanho. E todos os dias fazia o mesmo.
Lembro-me de, aos doze anos, os meus pais terem uma enorme discussão sobre o pagamento da casa - nunca fui menina rica - e eu fugi até ao túnel. Chorei e desabafei. Toda a minha vida está naquele pequeno caderno preto, escondido num pequeno buraco tapado por um pequeno tijolo num pequeno túnel.

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É de noite e está frio. Já se passaram segundos, minutos, horas. Certas vezes ouço sirenes, mas nenhuma se atreve a vir ao meu encontro.
Há anos que não voltava para aqui, já perdi o contacto com aquele meu confidente caderno. Decido então levantar-me e tirar aquele tijolo. Procuro por todas as paredes do túnel, mas só avisto o buraco. Aproximo-me deste e um vazio invade-me, percorrendo as minhas veias. É aí que me apercebo que perdi tudo: eu matei um homem. Eu matei um homem. Um homem. Eu roubei uma arma a um polícia. Eu roubei uma arma, e utilizei-a para matar. Eu coloquei os meus amigos em perigo. Os meus amigos estão em perigo. Eu fugi das algemas. Eu fugi.
Eu perdi o meu caderno de desabafos, a única salvação que me poderia ajudar agora.

Não tenho nada nem ninguém. Estou perdida neste planeta. Sou eu contra o mundo.

Enterro-me nos meus joelhos, a minha cabeça entre as pernas, embrulhada nos meus braços. Uma lágrima cai, seguida de outra e depois outra.
Voltar a casa nem é uma opção, neste momento os meus pais devem estar a tirar os meus pertences do quarto. O seu desejo de "filha perfeita" ficou inacabado, impossível.

Uma brisa do vento anuncia a chegada do frio noturno, e eu não tenho nada para me aquecer. As minhas mãos tornam-se roxas, as minhas pernas tremem.

Onde estará aquele diário? É de extrema importância que eu o encontre, pois lá está toda a minha vida. Mas ainda assim, a melancolia que sinto impede-me de me levantar. Choro ainda mais. São lágrimas que, por mais que tente, não consigo evitar que saiam.

- É disto que estás à procura?

Levanto a minha cabeça num ato repentino. Observo o dono daquela voz, que segura num caderno preto e aponta para o mesmo. Um rapaz. Terá a minha idade, mas o seu aspeto físico não é o que mais me preocupa neste momento.

Levanto-me e limpo as lágrimas que escorriam na minha cara. Tento observá-lo, mas a escuridão da noite impede-me de ver nitidamente. Assento os meus pés no chão e fecho a minha mão em forma de punho, preparando-me para o que quer que aquele rapaz quisesse fazer. Não sou muito boa em lutas, mas quando é para acontecer, acontece.

- Tem calma, não te vou fazer nenhum mal. - ele sentou-se no outro lado do túnel, longe de mim. Continuou com o caderno na mão, mas fechado. - Há dois anos, mais ou menos por volta disso, encontrei este diário.

O meu coração acelarou. Nem o estranho mais isolado do mundo poderia ter contacto com aquele diário. Toda a minha vida se encontra lá.

- Se queres que eu seja sincero, eu li. Escreves muito bem, sabias?

- Isso não te pertence. - afirmei eu, num tom de voz baixo mas audível.

- Pois não. Por isso é que todos os dias eu passava por aqui a esta hora, à procura da dona. - ele levantou-se, mas continuou longe e de posição natural, não bruto. - Todos os dias, a esta hora, durante dois anos, vim à procura da autora, vim à tua procura.

Apesar de não o conhecer, o rapaz (pelas atitudes que dizia ter feito) aparentava ser simpático...

- Agora que já encontraste, podias mo dar. - pedi eu, sem palavras a acrescentar.

- Não sei se o devo fazer, Rose...

Podia ter ficado surpreendida por ele saber o meu nome, mas lembrei-me que ele leu o diário, e que o meu nome seria a última coisa de "incrível" em que ele teria conhecimento.

- Rose, porque é que mataste um homem? -questiona ele, aproximando-se de mim mas ainda assim longe.

Espera.
Isso eu não escrevi no diário. E posso ter a certeza que este rapaz nunca esteve no meu liceu, nunca me esqueço de uma cara. Olhei-o de cima a baixo, mas ainda assim não o conseguia ver com qualidade o suficiente para descrever. Como é que ele sabia do ocorrido desta tarde?

- És viral, sabias? - ao dizer isto, o rapaz vira o ecrã do telemóvel para mim. Dou passos para a frente, ficando a poucos centímetros dele. Agora sim, consigo o observar. Era mais alto que eu, de físico bom mas escondido por uma sweatshirt e calças pretas. Possuía cabelo castanho, olhos azuis e lábios carnudos. Virei o meu olhar para o telemóvel, onde pude ler a notícia escrita numa página de jornal virtual.

«ADOLESCENTE DE 17 ANOS MATA HOMEM E FOGE»
"Rose Carter, de 17 anos, matou um homem que fazia alunos de réfens numa sala de aula. Após a jovem ter desobedecido às ordens da polícia de ficar junto com os outros alunos, a rapariga rouba uma arma a um oficial distraído e atira no homem. Rose é algemada de seguida, mas foge com ajuda de dois amigos cujos nomes não são revelados pelas autoridades. A polícia já começou com as procuras da jovem, mas Rose ainda não foi encontrada. Os pais da adolescente ainda não se pronunciaram sobre o assunto, alegando que tal acontecimento não provinha de sua filha. Os mesmos já devem estar habituados a acontecimentos fora do normal da sua família, devido à sua filha mais velha..."

Desligo o telemóvel sem terminar de ler a notícia. Que nervos, que angústia. Que vergonha.

FUGA IMPLACÁVELOnde histórias criam vida. Descubra agora