Capítulo 2

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Araguaína, fevereiro de 2003

-Vi, espera!

Ana Clara corria atrás de sua amiga, mas Vitória já estava longe demais para que ela pudesse alcançar. Tudo culpa daquela porcaria de bolsa de carrinho de princesa que ficava atrasando sua corrida. Ela nem gostava de princesas e tinha que ficar puxando aquilo pelos cantos.

Vitória no entanto, estava com sua mochila no ombro, indo em disparada pela rua, indiferente aos apelos desesperados de sua amiga. Estava magoada, desapontada e triste. Não tinha disposição alguma de conversar com Ana. Só queria poder chegar logo em casa, se enfiar embaixo das cobertas e esquecer logo aquele dia. Melhor. Queria esquecer da sua melhor amiga.

Virou a esquina, olhando para trás por um segundo e não enxergando Ana Clara. Por mais que estivesse chateada com a morena, sentiu uma leve preocupação a invadir. E se algo de ruim tivesse acontecido? E se Ana tivesse caído e se machucado? Também, com aquela bolsa enorme que ela carregava pra cima e pra baixo...

Se deteve por um instante, até avistar a pequena surgindo no final da rua, os cabelos negros voando no seu rosto. Suspirou aliviada, mas logo se lembrou do que Ana havia feito, e voltou a correr. A cada vez que Vitória se lembrava do dia na escola, das outras amigas de Aninha, e de como ela havia sido rejeitada e deixada de lado, sentia seus olhos arderem com as lágrimas que ela ainda não havia se permitido soltar. Se sentia machucada e traída por aquela menina que estava sempre ao seu lado, com quem ela mais se identificava e se sentia livre. Mas agora, Ana parecia querer novas amizades, de preferência com garotas mais velhas.

Entrou em casa num tiro, indo em direção ao seu quarto. Escutou sua mãe dizer alguma coisa da cozinha, mas a ignorou. As lágrimas já não podiam ser contidas pela criança, e desciam em abundância por seu rosto. Vitória fechou a porta do seu quarto apressadamente, se jogando em sua cama e permitindo que o choro saísse de uma só vez.

Se sentia boba por ter fugido de sua amiga, mas também não queria falar com ela. Ana ia fingir que nada tinha acontecido, ou então a trataria como tinha feito mais cedo, no recreio: como se ela fosse um bebê que não entendesse nada e fosse fazer a morena passar vergonha diante de suas novas amigas. Ora, Ana Clara nem era tão mais velha assim, só estava uma série à sua frente. Vitória não entendia, elas sempre se deram bem, a amizade delas iluminava tudo ao seu redor, tornava os dias mais leves e divertidos. Mas agora, sua amiga parecia querer desprezar todos os momentos bons que tiveram juntas por causa de três meninas chatas que a morena acabara de conhecer.

Já estava chorando a algum tempo, tentando aliviar todos os sentimentos ruins que apoderavam  sua mente, quando ouviu alguém bater à porta. Sentou-se depressa, puxando um cobertor para suas pernas, e limpando os olhos com as costas das mãos. Achava que fosse sua mãe, e não queria que ela a encontrasse chorando e acabasse fazendo mil questionamentos até ficar preocupada o suficiente para chamar a última pessoa que Vitória desejava ver.

Sussurrou um "entra", mas logo se arrependeu quando viu a silhueta pequena de Ana Clara aparecer na brecha da porta. Fechou a cara e desceu da cama, carregando o cobertor. Foi se sentar no cantinho do quarto, apoiando as costas na parede amarela e ficando encolhida ali. Colocou o cobertor sobre a cabeça, ciente de que recomeçaria a chorar se encarasse os olhos negros de Ana.

-Vai embora- sua voz soou abafada e triste. Estava abraçada nos joelhos, com os olhos fechados, pedindo para que Ana atendesse logo ao seu pedido. Por que ela tinha ido até a sua casa? Já não havia deixado claro que a cacheada devia "andar com as meninas da sua idade?"

-Vi...-ouviu a voz sussurrada e distante da pequena, e logo depois, silêncio. Pensou que Ana tivesse ido embora, mas logo sentiu uma mão tocar seu braço por cima do tecido.- Fala comigo Vivi.

-Eu não quero falar nada com você. VAI EMBORA- seu tom de voz aumentou, mas a cacheada se recusava a sair de debaixo do cobertor. 

-Vivi, tu tá brava comigo?- Ana recebeu o silêncio como resposta-É por causa do que eu  fiz , né?

De novo, a cacheada se manteve calada. Ana suspirou e se sentou próxima daquele montinho encostado na parede. Estava arrependida. No momento que ignorou Vitória e a deixou de lado, não pensou nas consequências do que tinha feito. Só queria se enturmar, e suas novas colegas não achavam legal que garotas mais velhas andassem com as mais novas. Lhe pareceu lógico que Vitória estivesse com as amigas de turma durante o recreio. Fora da escola, a sua amizade continuaria sendo a única que importava.

Mas agora, a morena podia perceber o quão frio e maldoso havia sido aquele pensamento. Vitória era sua pessoa, e era claro que ficaria chateada e magoada com toda aquela situação. E Ana sabia que ela tinha razão de se sentir assim. Quando saíram da escola, a cacheada não quisera dirigir sequer uma palavra para sua amiga. Seu costumeiro sorriso quando avistava a pequena não estava no seu rosto. Tudo que Ana Clara viu foi tristeza e raiva.

-Eu não queria dizer aquilo, Vi. Me perdoa- a garganta de  Ana parecia se fechar cada vez mais. Não queria ter feito aquilo com sua melhor amiga; se sentia uma idiota por não ter pensado nos sentimentos de Vitória ao dizer aquelas coisas.- Por favor, Vi. Olha pra mim.

Lentamente, a cacheada deixou o cobertor descer por seu corpo. Ana se contraiu quando viu aqueles olhos vermelhos e inchados de tanto chorar. Queria abraçar Vitória e pedir um milhão de desculpas. Mas sabia que não era assim que faria sua amiga perdoá-la.

-Eu só queria fazer novas amigas Vivi.- a morena abaixou a cabeça. Sabia que aquela não era uma justificativa aceitável para ter deixado sua amiga sozinha, enquanto ria e brincava com outras garotas no recreio.

-E tu tinha que me deixar de lado por isso? Eu não podia ser amiga delas também?

Ana voltou seu rosto para o de Vitória, e se assustou com o quanto os olhos de sua amiga demostravam sua raiva. A morena estava envergonhada e seu arrependimento era sincero; como tinha sido burra! Ela devia ter se afastado de suas colegas logo quando elas disseram que não deveria andar com as meninas mais novas.Aquelas garotas nem mereciam a amizade de Vitória, para começo de conversa.

- Eu sei que eu estraguei seu primeiro dia na escola, Vitória. Mas eu tô muito arrependida. Não devia ter feito aquilo, tu sabe que é minha melhor amiga nesse mundo interim. Eu fui uma boba, por favor me desculpa. Eu prometo que vou passar o recreio todos os dias com tu.

-Você promete?

Ana balançou a cabeça afirmativamente.Os olhos de Vitória já estavam marejados novamente. Ela nunca conseguia ficar com raiva de Ana Clara por muito tempo, e sabia que ela realmente não tivera a intenção de magoá-la. Olhou no fundo daqueles olhos negros caídinhos que ela tinha descobrido amar e só enxergou a verdade das palavras ditas por Ana. Viu uma lágrima descer pelo rosto moreno, já que Ana estava com medo de sua amiga mandá-la embora de novo, dando um fim definitivo naquela amizade.

-Tu me perdoa, leãozinho? 

Antes que Vitória pudesse responder, sua mãe apareceu na porta, perguntando para as meninas se estava tudo bem. As duas se ergueram em um salto, limpando o rosto para esconder os vestígios do choro. Ana olhou para sua amiga, temerosa de qual seria a sua resposta. Mas o que viu somente iluminou o seu coração. Aquele lindo sorriso estava de volta nos lábios da cacheada, deixando os olhos da menina pequenininhos de tão grande que era. A morena ficou aliviada e sorriu junto, se prometendo que nunca mais seria o motivo de choro de Vitória. E suas colegas de escola, poderiam falar o que quisessem. Nada nem ninguém no mundo poderia mudar o que ela sentia por sua amiga. 

Isabel ainda olhava para as duas, sem entender nada. Franziu o cenho e perguntou novamente se estava tudo bem.Vitória entrelaçou seus pequenos dedos nos de Ana, sem desviar os olhos dos dela ao dizer:

-Agora está.


Com amor, VitóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora