EU SAÍ DA SALA DE AULA NO HORÁRIO DE SEMPRE E ESPEREI uma das minhas grandes amigas em frente à nossa faculdade. Ela que está no primeiro período, ainda cumpre à risca o horário, então, tenho que aguardá-la por alguns minutos até ver seu lindo cabelo vermelho atravessando a porta principal. Está linda em seus tons de preto e vermelho. Reluzente, seu sorriso é encantador e por isso me aproximei há alguns meses: ela traz luz, mesmo com todas as trevas ao seu redor.
Conversamos, damos algumas risadas e eu começo a fazer o mesmo ritual de sempre. Olho para os lados procurando o que não quer ser visto. Volto a nossa conversa, ela não consegue perceber que meu olho foge no horizonte, vaga entre as pessoas.
Falamos sobre sua mais recente paquera e ela me faz esquecer um pouco minhas frustrações e sentimentos não correspondidos. Sua van chega e ela precisa ir. Seus pais são possessivos, por isso, ela vem e volta para a faculdade de van escolar, cumprindo regras e quebrando-as nas entrelinhas com um cigarro ou outro para acompanhar. Gosto de gente assim.
-Fique bem garota, amo você.
-Beijos moço, fique bem. – Sua voz é doce e serena, por alguns segundos, me acalma. Ela entra na van e parte para sua sufocante casa.
Vazio. Detesto estar sozinho, mas detestar não significa que não aguento. Sempre aguentei, mesmo que doa, eu vou até o fim. Caminho até onde sei que ele possa estar porque todas as noites quando não vem falar comigo, ele está lá, lendo. O único garoto, em meio às panelinhas, que está com um livro na mão viajando em um mundo paralelo enquanto espera seu transporte.
A cada passo que dou, sei que estou fazendo algo errado. Não devo ir até lá. Não posso voltar aos sentimentos que me sufocam todas as noites. Continuo indo e digo para mim mesmo: "E daí? Já estou nesse buraco mesmo. Serei sua eterna tormenta!". Uma vez, disse para ele que eu seria sua eterna tormenta, até deixei isso escrito em uma dedicatória de um livro muito especial que acompanhou nossa curta paixão de inverno.
Aproximo-me com um sorriso e, com um pouco de ácido nas palavras, digo:
-Você é o único ser que está lendo em pé no meio dessa multidão.
Ele fecha o livro e começamos a conversar sobre uma recente morte no cenário político brasileiro, sem cumprimentos ou perguntas como: "Você está bem?" Ele sabe a resposta.
Vejo que está bem vestido. Usa seu sapato preto de todos os dias, calça jeans azul escuro, uma camiseta e uma jaqueta de couro e, para completar, um cachecol preto. Nunca confessei, mas ele fica mais lindo quando usa aquela jaqueta preta. Durante nossa conversa, uma parte da minha mente associa a jaqueta com nosso último encontro à sós. Ele usou essa mesma roupa. Percebo tudo, cada detalhe. Se soubesse, naquela noite, que seria nosso último momento de intimidade, de troca de segredos e carinhos, eu jamais o teria deixado partir. Jamais teria terminado a música. Passaram-se dias e tudo acabou. Tento, nota por nota, reconstruir a canção, infelizmente, nada acontece duas vezes da mesma maneira, como diz nosso sábio Aslam.
Volto consciente a nossa conversa e ela flui naturalmente entre planos para o futuro e discussões bobas sobre minhas canções e videoclipes. De repente, entramos em uma zona perigosa.
Desde o dia em que o conheci, ele me inspira de uma maneira mágica e criativa. Seu brilho me invade e consigo criar um arco-íris de cores inimagináveis dentro da minha cabeça, e em quase todas as vezes, transformo esse prisma em lindas canções, textos e pensamentos para o meu dia. Sempre pedi aos céus alguém que me inspirasse, alguém que me mostrasse algo novo, talvez esse alguém tenha vindo de um jeito diferente do que imaginei para mim.
Ele me questiona sobre minhas divulgações mais recentes, que na verdade, soam mais como indiretas de amor e ódio. Tento desviar o assunto, já que todas as vezes não acabamos bem quando falamos sobre isso. Papo melódico, partida de xadrez que vence quem convence.
Consigo desviar. Começamos a falar sobre possibilidades de emprego para ele. Mais uma vez, preocupo-me em ajudá-lo a encontrar seu caminho. Sou controlador, todavia meu controle é para o bem, mesmo que algumas técnicas pareçam um pouco sombrias. Os minutos de boa conversa passam... continuo ali, parado segurando meu celular enquanto ele segura seus livros. Ele sempre preocupado com o tempo e, a todo instante, olhando a esquina para encontrar seu ônibus ou cuidando o relógio. Antes isso me incomodava, agora só percebi que faz parte dele: ser cuidadoso, só não com os sentimentos alheios e corações.
Seu ônibus se aproxima e já sei como vai entoar a despedida. Fria, sem abraços ou enrolações, apenas um simples "tchau". Não deixo. Quando vejo que ele vai dizer adeus, aperto suas mãos como um estranho cumprimentado alguém na rua. Não olho em seus olhos, eles me balançam.
-Tchau, garoto. Se cuida. Ele segura minha mão e responde suave:
-Se cuida e juízo.
-Juízo? Não conheço. – Respondo para mostrar que não me preocupo em viver cuidando o que faço. Sou livre. Ou não, mas é essa a imagem que quero que ele tenha de mim agora. Esse garoto complexo já viu minha vulnerabilidade e não o deixarei usá-la novamente.
Ele parte para sua cidade escondida numa cápsula de medo, seu mundo de aparências e pessoas completamente diferentes da realidade com a qual ele sonha. Ele retorna para sua Nárnia.
São quase onze horas, estou atrasado e meu pai me espera na outra esquina. Como sempre, esqueço o tempo para estar um pouco mais perto dele. Masoquista que gosta de sofrer? Não, porque não sofro demasiadamente ou passo o dia pensando nele, entretanto é inevitável quando chega a noite e não lembrar que ele está lá, não lembrar tudo o que passou. Eu não consigo esquecer, não consigo esquecer de quem amo. Não consigo esquecer que sempre o quis como homem.
No caminho, aquela tristeza de sempre bate na porta do meu coração e mil perguntas rondam minha mente: "por que ele não vê que continuo aqui?", "por que não percebe que o amo?", "por que ignora tudo o que sente e não deixa ser amado?". Garoto complexo, complexo demais.
Incomoda. Machuca. Penso que poderíamos ter tudo. Poderíamos ser grandes. Poderíamos explorar as entrelinhas da fantasia. Poderíamos viver sem limites, criar arte e movimento, ir além de um conceito sem definição.
Coloco meus fones de ouvido e aperto play em uma canção que diz tudo o que sinto todas as noites em que o vejo lá, parado, enquanto tudo o que eu queria era abraçá-lo e beijá-lo mais uma vez. Levá-lo comigo para qualquer lugar além das montanhas, além dos mares, além do céu ou do inferno.
"Mal você sabe que estou desmoronando enquanto você cai no sono, mal você sabe que ainda sou assombrado pelas memórias. Mal você sabe que estou tentando me reerguer pedaço por pedaço, você mal sabe que preciso de um pouco mais de tempo..." (Little Do You Know, Alex & Sierra)
Antes acreditava que ele tinha apenas medo de se entregar ou talvez estivesse inseguro, já hoje, vejo que nunca passei de uma aventura boba e o choque da realidade ainda é algo que finjo não aceitar, porque seria o adeus de tudo. Talvez ele acredite que eu esteja seguindo em frente quando, na verdade, estacionei e não consigo me mexer. Toda vez que o encontro ou converso com ele é uma tentativa estúpida de dizer: "eu te amo". Estou errado, eu sei, estou amando e foda-se o mundo ou ele.
A canção me faz derramar uma lágrima, enxugo-a para ninguém notar, entro no carro e meu pai briga comigo, mais uma vez, pelo atraso. Tudo termina com o mesmo sentimento de saudade e amor que não saem de mim. Continuarei amando-o, só que agora em silêncio.
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O Garoto do Coração de Porcelana: um diário de sentimentos
RomanceO GAROTO DO CORAÇÃO DE PORCELANA é a primeira obra literária do cantor, jornalista e musicista Marc Yann. "O diário de sentimentos" traz histórias, crônicas e poesias envolvendo comportamento, sentimentos e emoções. Um misto de amor, fantasias, dore...