A cidade de São Paulo, em 1900, era um animado centro de comércio e indústria em crescente desenvolvimento, onde uma população de muito mais de duzentos mil habitantes circulava febrilmente por ruas estreitas, irregulares, sinuosas, quase todas em ladeira. Dessa população, grande parte eram imigrantes vindos de várias regiões da Europa na esperança de conquistar uma vida melhor na América.
E o que era a América, afinal?... Para mim, a rua Tamandaré, no bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, onde ficava a casa em que vim morar no Brasil. Rua de sobe-e-desce, começava bem embaixo, na confluência das ruas da Glória e Lavapés, ia indo e indo, cada vez mais empinada, até acabar morrendo lá pelos lados altos do Murro Vermelho. Do lado de baixo, onde nascia, seu prolongamento em outras ruas de outros bairros, como o Cambuci e o Ipiranga, desenhava o caminho do mar, que desembocar em Santos, a cidade com porto onde eu desembarcara.
Essa era minha América: uma rua da Liberdade, onde se concentrava uma pequena população da Baixa Itália, quase todos calabreses vindo da Saracena, aldeia em que nasci em 1890: primeiro chegara um, que se estabelecera e chamara outro, que também chegara e se estabelecera e chamara outro mais outro. Assim, a corrente humana acabara e formando uma pequena comunidade de compadres e comadres, todos companheiros da mesma aventura da emigração. Unidos pelas raízes e solidários nas necessidades comuns, conservavam esse patrícios os costumes e dialetos da região de origem, embora já se aclimatando aos novos hábitos e à língua do país de adoção.
A princípio, eu nem tive a sensação de estar no Brasil. Parecia-me ainda continuar na minha aldeia, que, como a cidade de São Paulo, era cheia de ladeiras por onde chiavam as rodas das carroças e faiscavam os cascos dos cavalos. Uma vez, essa impressão foi tão forte, que me fez voar alvoroçada da janela para dentro de casa.
- Mamãe! Mamãe! Venha ver depressa! As cabrinhas da Saracena!
Minha mãe chegou até ao parapeito, espiou, sem qualquer gesto de surpresa, uma tropa de cabras que subia a rua tilintando guizos. Eu ainda cheguei a perguntar, curiosa:
- Tem alguém doente na rua?
E foi com espanto que ouvi a explicação de que o cabreiro - que morava numa chácara ali perto - passava várias vezes por semana e que aqui no Brasil não era necessário, como na Saracena, estar com a saúde fraca para tomar leite de cabra. Aqui havia fartura, graça a Deus.
De novidade como essa - novidade para mim, é claro - a rua estava sempre cheia. E, pouco a pouco, fui descobrindo que, se a Tamandaré era parecida com minha aldeia, também era muito diferente dela. Lá não havia a agitação de gente passando e repassando o dia inteiro, muitos menos o barulho dos vendedores ambulantes, cujos gritos faziam as pessoas largarem o serviço e espicharem o pescoços nas janelas. Um desses gritos era o do homem dos anúncios, que não vendia nada, mas berrava mais alto do que os que vendiam, apregoando mercadorias disponíveis em outras partes da cidade. Ele vinha uma vez por semana, enfiava a cara num bocal de papelão e esgoelava:
- Chegaram os salames e queijos no armazém de Fulano!
- Chegaram as amêndoas, nozes e avelãs no empório de Sicrano!
- Chegaram os tecidos novas na lojas de Beltrano!
Às vezes, a rua era agitada por acontecimentos mais divertidos. Como quando corri à janela ao som de cornetas e bombos. Era um circo! Um circo anunciando o seu espetáculo num dos terreno baldios das redondezas. E o anunciante era um colorido palhaço, que esganiçava à frente da banda, dando desengonçadas cambalhotas que faziam rir as crianças e os pais das crianças. Atrás dele, uma saltitante moça vestida de bailarina carregava nos braços ("Mamãe, mamãe, que bicho é esse?...") um macaquinho, que descascava entre caretas (" Mamãe, mamãe, que nozes são essas?...") um punhado de amendoins.
O espetáculo maior da Tamandaré, porém, era dado pela própria rua e por toda aquela gente ativa, cuja principal distração era o trabalho cotidiano. A "fartura, graça a Deus", a que minha mãe se referia vinha graças, também, àqueles homens e mulheres que não perdia um minuto na vida, no seu afã de ganhar tempo e dinheiro. Rua acordava cedo. Despeja para fora das casas os que iam batalhar pela sobrevivência em outros pontos de São Paulo: operários de fábricas, pedreiros, jardineiro, cocheiro, carvoeiros, vendedores ambulantes, jornaleiros e tantos outros que em médios e pequenos empregos, iam pouco a pouco amealhando economias para o futuro dos filhos. Alguns desses tantos outros exerciam ofícios na própria rua, em oficinas montadas nos cômodos de suas casas: eram alfaiates, sapateiros, carpinteiros, funileiros e outros pequenos artífices, que passavam o dia debruçados sobre panos, couros, madeira e metais, moldando com as próprias mãos a matéria de nova vida, menos difícil e menos pobre.
Essa era a população da rua em que eu tinha vindo viver na América. Melhor dizendo: essa era uma parte da população. É que a Tamandaré tinha uma fronteira natural, estabelecida pela esquina da Conselheiro Furtado. No trecho em que ficava a minha casa, descendo da Conselheiro até a rua do Lavapés era a parte baixa da Tamandaré, com habitações modestas, de portas e janelas, um ou outro sobrado com quintal no fundo, alguns porões habitáveis e mesmo um cortiço, onde morava uma população muito mais humilde do que aquela assentada no rés-do-chão. À medida que a rua ia subindo, subia também a classe social dos moradores. E as casas pobres iam, pouco a pouco, sendo substituídas por palacetes com jardim e pomar, habitados por famílias ricas, de raízes muitos jovens - apenas quatrocentos anos! -, se comparadas com raízes milenares dos imigrantes europeus, mas com a vantagem de estarem todas fincadas no chão primitivo de São Paulo.
Assim, na baixa Tamandaré e vizinhanças, moravam os Laurito, os Priolli, os Bandecchi, os Bloise, os Pugliese, os Cappelano e outros, que traíam, no sobrenome, as origens longínquas. Já na alta Tamandaré estavam não só os inspiradores da denominações da rua como os Tibiriçá, os Uchoa, Nunes Dias, entre outros de antiga estirpe paulista.
E eu, quem era eu, no meio de todos esses nomes? Apenas Fortunatella: a filha do finado Domenico Gallo e da muito viva Giuseppina Ventimiglia, enteada do imigrante Vincenzo Laurito. Uma menina italiana qualquer, igual a muitas outras que viviam na cidade de São Paulo e em outras cidades do Brasil e em outras cidades da América.
Apenas Fortunatella: uma calabresinha que tinha vindo diretamente da Baixa Itália para a Baixa Tamandaré.
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A MENINA QUE DESCOBRIU O BRASIL
RandomOs imigrantes tem pressa. O século XX promete prosperidade a quem a quem trabalha e poupa. Preguiça e cansaço são palavras ausentes ao cotidiano da rua Tamandaré, reduto dos calabreses. Felizes os que têm muitos filhos. Quantos mais braços, mais cu...